por Roberto Goldkorn
Já falei, creio que mais de uma vez nesta coluna, sobre as falsas crenças na existência do “livre-arbítrio”. Em resumo, os espiritualistas acreditam no livre-arbítrio, que seria o livre (que Deus concedeu) exercício da nossa vontade; o que implica em fazermos escolhas livremente e termos de arcar com as consequências das mesmas.
Essa crença serve muito bem para explicar a dicotomia ente um Deus totalmente bom e justo, e as coisas ruins que nos acontecem. Afinal, esse Deus totalmente bom e justo é também o maior dos democratas e nos concedeu o poder de comermos do fruto proibido, contanto que sejamos capazes de encarar os ônus de nossa “vontade”.
Nem é preciso recorrer a ideia do “carma” para entender o quanto somos limitados em termos de Consciência e, portanto, sem condições de exercermos plenamente e livremente o nosso arbítrio que significa julgamento.
Vamos usar a psicanálise para entender que, quando se é controlado pelas pulsões inconscientes, pelas pressões da sociedade e de determinada cultura, sobra pouco espaço livre para o exercício da autodeterminação.
Erich Fromm no seu magnífico livro “O Medo à Liberdade” nos dá o seguinte exemplo: “… Porém não são poucos casos em que um homem (ou uma mulher, nessa situação), acredita conscientemente que quer se casar com determinada pessoa, embora se sinta enredado em uma série de acontecimentos que conduzem ao casamento e que parecem obstruir qualquer caminho de fuga.
Durante os meses que precedem o casamento, está firmemente convencido de que quer mesmo casar-se, e o primeiro indício, às vezes tardio, de que talvez não seja esse o caso, é o caso de no dia do casamento se sentir subitamente “apavorado” e querendo fugir. Se ele for uma pessoa “sensata”, esse sentimento demorará apenas minutos, e ele responderá a pergunta se deseja casar-se com a convicção inabalável de que quer.”
Essa dicotomia, em termos populares, esse arranca-rabo entre uma força exterior, um imperativo cultural/social, e uma pulsão bem íntima que está na contramão, é geradora de neuroses e até de psicoses. Mas acima de tudo, essa guerra gera o que chamo de a doença invisível da infelicidade. E isso é simples de explicar e de entender: quem fica feliz em ser levado a fazer exatamente aquilo que não quer? E mais, quando esse se torna um longo processo de frustração sistemática dessas pulsões, começando com o “você tem de ir à escola quer queira quer não”, até comandos mais sutis como: “você precisa viver, quer queira quer não”, os resultados costumam não ser bons.
Tenho observado ao longo dos anos, pessoas aparentemente “de bem com a vida”, bebendo demais, se drogando demais, viciadas em sexo e pornografia, em comprar ou em jogar, ou em agredir, ou em se fanatizar no supermercado das pseudoreligiões e seitas e isso é o lado visível desse iceberg onde os titãs se confrontam dentro do indivíduo. Como dizem os indianos: quando os elefantes brigam, quem sofre é a grama – nós somos a grama.
Há pouco espaço na vida da pessoa comum, para as decisões Conscientes e, portanto, o sofrimento que advém das más decisões, tomadas na escuridão da nossa psique, são tão dolorosas, porque são incompreensíveis.
Se tomo decisões das quais tenho nada ou quase nada de consciência, não me sinto responsável pelas consequências, e tenho de atribui-las ao destino, ao azar/sorte, ao carma, a Deus, ao diabo, ao marido ou à mulher ou ao governo. Nesse caso cai sobre mim o manto da impotência e do rancor, afinal: “por que eu?”
Saber que o livre-arbítrio é apenas algo que pode vir a ser, com a evolução da humanidade, (ou não), seria uma demonstração de maior humildade e sabedoria e naturalmente abriria uma avenida de possibilidades para um upgrade da consciência que voa tão baixo na média dos humanos atuais.
O mais impactante na teoria que apoio, é que essa ilusão de poder, se estende além da vida (para quem acredita é claro). Muitos programas do tipo “vir a ser”, “vou fazer”, “não quero mais”, “vou mudar”, “deixe-me só”, que foram produzidos como reação aos impactos emocionais do sujeito em vida, irão se chocar com a realidade ou com as outras instâncias da mente depois de sua nova encarnação.
Claro que isso cria no mínimo uma ambivalência de personalidades, um choque entre os eus do sujeito, e um caminho cheio de contradições, do tipo “vai, vai vai-não vou”, como na letra da velha canção.
Uma pessoa que teve uma experiência traumática de casamento, que se sentiu esmagada, oprimida, pela presença e a atuação do outro sob o rótulo do “casamento”, pode vir para a nova vida sabotando qualquer possibilidade de casamento. Mas dependendo da força do outro roteiro (da outra metade da laranja), essa pessoa que está fugindo pode não ter força suficiente para escapar da outra metade que está “perseguindo”, porque para essa, a experiência do casamento não foi tão ruim assim, ou está em busca de uma segunda chance.
Onde está o livre-arbítrio quando queremos fugir de alguém que decide que nos quer junto, e por seu desejo ser mais tenaz, supera o nosso de fuga?
Mais que isso, onde está o nosso livre-arbítrio que não é capaz de ir além do perímetro da nossa própria “consciência” e sequer imaginar que a outra pessoa fez uma leitura muito diferente da nossa sobre a relação e que isso vai impactar nos nossos planos?
A convivência do conceito de livre-arbítrio se choca com o de felicidade, porque são justamente essas imensas páreas de buraco negro da consciência que geram escolhas danosas, infelicitantes, e pelas quais iremos nos arrepender.
Ainda estamos próximos demais dos nossos ancestrais símios com quem partilhamos (segundo os cientistas) 99% de nosso DNA. Isso, nos coloca na categoria dos seres guiados por programas inatos, herdados com pouca área de manobra evolutiva.
Pesquisas recentes nos mostram que nos últimos 150 anos nosso cérebro cresceu 200mm³, o que equivale ao volume de uma bola de tênis. Essa é uma boa notícia, embora não seja um indicativo de que crescemos igualmente em desenvolvimento psíquico e principalmente espiritual.
A “má notícia” é que nesse mesmo período o cérebro eletrônico cresceu um bilhão de vezes mais que o nosso, num espaço de tempo muito menor. O que isso quer dizer? Muita coisa ou nada. Alguns apostam que em pouco tempo, o cérebro de pastilhas de silício irá dominar o nosso. Que sua capacidade de aprendizagem será quase tão veloz quanto a da velocidade da luz, deixando-nos como macaquinhos diante de seu poder, e que as máquinas evoluirão para se atualizarem e se
autoconstruírem.
O grande questionamento é: diante disso, o que farão de nós?
Ninguém sabe, mas a ironia do destino é que sem áreas de buraco negro de “consciência”, sabendo literalmente de tudo, os gigantescos cérebros de silício e material biológico talvez conquistem o tão quimérico “livre- arbítrio.”