por Rosemeire Zago
Muitos adultos ao lembrarem de sua infância se questionam se certas imagens registradas em sua memória aconteceram de fato. As pessoas sempre relacionam maus-tratos com espancamentos, mas podemos encontrar muitas definições para os maus-tratos na infância. Podemos incluir crianças mal-amadas, ou seja, aquelas que sofreram várias formas de abuso afetivo; crianças mártires, aquelas que sofreram todas as formas de violência física; crianças abandonadas, que foram atingidas pelo desamparo e negligência; e ainda temos aquelas crianças que são comercializadas, pois foram transformadas em mercadorias de prostituição, pornografia infantil, tráfego de drogas e exploração do trabalho infantil, onde fica claro o poder exercido por um adulto sobre quem ainda não tem condições de se defender.
O intuito desse artigo não é apontar culpados, mas sim alertar e conscientizar dos prejuízos causados por esses adultos em crianças que logo cedo trocaram a inocência pela dor, e assim, proporcionar uma reflexão tanto em quem foi vítima desses abusos, como para quem os provocou. O que não podemos é continuar ouvindo, lendo, participando de fatos como esses e nos mantermos distantes e isolados como se nada estivesse acontecendo.
Afinal, os prejuízos emocionais são profundos e requerem muitas vezes acompanhamento psicológico para o resto da vida, com o intuito de ter alguém que lembre a essas pessoas que apesar de terem sido vítimas de maus-tratos durante a infância, são pessoas com valor, que merecem ser amadas e felizes.
Essas crianças vitimizadas, em geral, tornam-se adultos que continuam a se castigarem, como se punissem por estarem vivos e que não se sentem merecedores de receberem amor. Em geral, o adulto agressor também foi vítima de maus-tratos durante sua infância, assunto que será explorado em outro momento.
É muito comum o adulto agressor exigir que a criança seja "cúmplice", num pacto de silêncio, ameaçando-a que será mais punida ainda caso conte para alguém, gerando assim um medo que a paralisa diante da possibilidade de pedir ajuda.
É possível registrar três tipos de abuso:
– Abuso físico
É o uso de força física intencional com o objetivo de ferir, danificar ou destruir. Incluem-se aqui os castigos corporais, como bater de forma descontrolada ou ainda utilizando-se de algum instrumento, seja cabo de vassouras, panelas, panos molhados, cintos, ferro, correntes…
Diferenciar um comportamento acidental de um intencional muitas vezes se torna difícil, pois um comportamento acidental num primeiro momento, poderá ser determinado após melhor investigação, por uma intenção inconsciente. Um exemplo muito comum é a mãe que "sem querer" deixou a panela com água ou óleo quente cair sobre a criança provocando queimaduras. Mesmo uma pessoa que não tenha a intenção de prejudicar a criança, mas o fato de ignorar os efeitos do seu comportamento também é considerado abuso.
– Abuso psicológico
Também conhecido como tortura psicológica. Ocorre quando um adulto constantemente deprecia a criança, bloqueia seus esforços de autoaceitação, causando-lhe intenso sofrimento psíquico. Ameaças de abandono também podem tornar uma criança medrosa e ansiosa.
Aqui podemos citar duas formas básicas de abuso: negligência afetiva e rejeição afetiva.
A negligência afetiva é a falta de responsabilidade, de calor humano, de interesse para com as necessidades e manifestações da criança. Representa uma omissão para prover necessidades físicas e emocionais. A criança é totalmente dependente dos pais e/ou responsáveis, mas muitas vezes encontramos pais que ignoram as necessidades de alimentação, higiene, vestuário, etc. É evidente que se a criança não foi alimentada por falta de recursos financeiros não é considerada negligência, mas caso o dinheiro conseguido seja desviado para o consumo de bebidas alcoólicas, com certeza será.
A rejeição afetiva é a manifestação de depreciação e agressividade com a criança. Pais que culpam os filhos pela sua própria infelicidade e os responsabilizam pela manutenção do casamento que já acabou; pais que expressam o quanto o nascimento da criança atrapalhou sua vida afetiva e profissional. As expressões verbais agressivas também são consideradas abusos, onde a única forma de comunicação é através de gritos, xingamentos, broncas, críticas, cobranças, gerando na criança cada vez mais os sentimentos de incapacidade e inadequação. Fale o que falar, faça o que fizer, estará sempre errada.
O abandono e a rejeição são sentimentos que perduram por toda a vida e influenciam principalmente a relação afetiva futura.
– Abuso sexual
É todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança. Segundo pesquisas, uma menina em cinco e um menino em dez são vítimas de abuso sexual antes dos 18 anos. Em geral, o abuso acontece dentro do próprio lar, pelos próprios familiares, sendo provocado pelo próprio pai ou irmãos mais velhos. Nesses casos, o silêncio sempre se impõe. Se a criança buscar ajuda contando para um outro familiar, poderá ainda ser acusada de estar inventando e não ser levada a sério sua acusação.
É importante que quem sofreu algum tipo de abuso na infância ou na adolescência busque ajuda psicológica para desenvolver estruturas para suportar e elaborar todos esse marcos que dificilmente são esquecidos, pois as consequências dos maus-tratos podem se fazer refletir em todas as áreas da vida.
– Dica de filme
Um filme muito interessante É Voltando a Viver com Derek Luke e Denzel Washington. Baseado em fatos reais conta a história de um marinheiro rebelde que recebe ordens para consultar-se com o psiquiatra da marinha, pois precisa aprender a dominar seu temperamento instável. Ao relembrar a história, faz uma viagem emocionante ao seu doloroso passado e, a partir desse confronto, muda toda sua trajetória de vida.
O filme reflete muito bem as consequências emocionais de quem passou por maus-tratos na infância, com agressões físicas, sexuais e psicológicas. Para quem deseja assistir vale a pena ficar atento ao momento que o marinheiro reencontra-se na porta da casa, com a família que o "criou" e, ao tentarem abraçá-lo, perceba sua atitude que demonstra o quanto passou a respeitar os próprios sentimentos. Mostra ainda que é possível aprender a lidar com um passado que tanto machuca.
– Indicação Bibliográfica
Crianças Vitimizadas – A Síndrome do Pequeno Poder
Org. Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra
Editora Iglu