por Aurea Afonso Caetano
Contar um sonho, dizer quem sou eu que sonha, narrar minha história, ampliar minha visão de mim mesmo e do mundo. Tarefas do homem em transformação!
Apesar de vivermos em um mundo cada vez mais tecnológico, em uma sociedade multimídia, nossa comunicação é, ainda, permeada por palavras, sejam elas faladas, escritas ou pensadas. Através da utilização da capacidade de expressão verbal, que nos diferencia de todas as outras espécies, podemos dar significado a nossas vivências, podemos trocar, dividir experiências, ampliar a percepção que temos do mundo, crescer, para dentro e para fora.
Um homem se faz através de palavras. Nossa cultura está estruturada na comunicação verbal. Pensamentos e emoções são decodificados, transformados em códigos verbais para serem melhor compreendidos, para serem elaborados. A palavra é germe, foi a palavra soprada no ouvido de Maria que deu origem ao mito que fundamenta nossa civilização. O Espírito transformado em palavra fecundando a Virgem que dá a luz ao Filho do Pai. A palavra criativa.
E a boa literatura é a palavra organizada, elaborada de forma a expressar um encadeamento de ideias, sensações, vivências, de forma a contar uma história que nos comova, que nos toque. E não é esse o papel da arte em geral: a expressão maior da humanidade ou do que há de mais profundamente humano em nós? A possibilidade de comover, iluminar, encantar e com esse encantamento abrir clareiras, lançar luz, abrir novos espaços, mobilizar novas possibilidades, novas formas de ver o mundo.
São os momentos de "encantamento", iluminação ou comoção que vão quebrar ou modificar "a ordem natural das coisas". São também os momentos de crise, que não deixam de ser também encantamentos, que vão trazer essa possibilidade. É nesse momento que entra a capacidade humana de elaboração simbólica. A possibilidade de, a partir da ruptura, criar novos sentidos, re-arranjar antigas vivências dando a elas um novo significado, re-criar aspectos de nossa psique.
Trabalhando, lidando com a energia liberada por essa quebra ou ruptura, transformando esse momento em um novo estado de coisas vamos lentamente elaborando a mudança, abrindo espaço para o novo, articulando essa transformação. E embora esse processo possa ser vivido na relação com o outro, num contexto de dualidade, é, no entanto, extremamente solitário. Diz respeito a cada um de nós em sua mais profunda individualidade, em seu caminho mais verdadeiro, mais único.
Acredito que a literatura em especial traz a possibilidade de comover, encantar, lançar luz, abrir clareiras e espaços me obrigando de alguma forma a dar conta de conteúdos que muitas vezes não surgiriam de outra forma. Uma boa obra literária é um tradutor de conteúdos inconscientes, de vivências, desejos, medos e sofrimentos que estão de alguma forma à espera de uma nomeação, uma explicitação. É a palavra escrita como agente transformador. De acordo com Kenzaburo Oe, escritor japonês prêmio Nobel de literatura, os aspectos mais importantes da literatura são justamente os que dizem respeito à possibilidade de tomar conta de si mesmo e do outro.
Interessante pensar que ao narrar um sonho podemos fazer uso desta mesma ferramenta, contar algo, encadear um sentido, nomear uma sensação, reconhecer um conteúdo esquecido ou desconhecido. Ampliar as possibilidades de vivencias significativas ampliando o campo da vida.
Quem sou eu que me conto e como me conto? A partir de que "lugar" eu me conto? Como vejo/sinto o mundo? Qual o espaço que ocupo? Qual o meu tamanho? E… que tamanho quero ter ou para onde e como quero crescer? Projetos de ano novo?