por Regina Wielenska
Há aproximadamente 28 anos, nesta época do ano, recebi um especialíssimo presente de Natal: uma córnea, que me restituiu a visão do olho esquerdo, prejudicado por uma doença congênita.
Como de praxe, nunca soube uma linha sequer das condições da morte do doador ou de sua identidade. No entanto, sinto a cada dia os efeitos da doação de órgãos.
Com facilidade digito as palavras dessa coluna. Vi o queijo derretido espalhar-se como ouro líquido na superfície do pão. A decoração de Natal da Avenida Paulista, essa também pude ver. O sorriso dos amigos, cada pôr-do-sol, meus olhos inchados depois de chorar, a cara amorosa e o corpo inerte de minha mãe, tudo isso vi porque uma família aceitou doar as córneas de um ente querido que não mais poderia estar neste vasto e estranho mundo. Triste generosidade de uns, saúde de outros. Esse foi um gesto de absoluta e anônima amorosidade.
Para a família do (a) doador(a) só tenho palavras de gratidão. Queria que minhas sensações e palavras fossem magicamente depositadas aos pés dos sobreviventes, e que elas lhe narrassem em detalhes tudo que as antigas células de quem se foi me ajudaram a viver.
Ninguém morre mais cedo por se inscrever como doador de órgãos. Apenas ajuda um (des)semelhante a viver melhor depois que a vida já tornou mesmo inviável. Famílias, peço que vocês pensem nisso. A morte de quem se ama vai doer um mesmo tanto, porém é acrescida de uma reconfortante pitada de esperança e serenidade.
Caro irmão, ou cara irmã, um dia (espero que essa hora demore um tanto!) eu estarei ao seu lado para contar tudo que vi depois que você se tornou imaterial.
Por favor, nesta hora tenha a paciência de me colocar a par desta misteriosa coisa de vida após a vida.