por Joel Rennó Jr.
Vira e mexe a mídia veicula matérias associando corrupção à doença mental. Já vi reportagens classificando três subtipos de corruptos: o corrupto antissocial, o corrupto borderline e o corrupto narcísico, fazendo-se um elo de ligação com os transtornos de personalidade (TP).
Vou começar definindo de maneira clara e correta o que é um Transtorno de Personalidade (TP).
A personalidade é a síntese de nossos comportamentos, cognições e emoções que faz de cada um de nós uma pessoa única. Estes atributos tendem a ser estáveis e permanentes, permitindo que nossos familiares, amigos e conhecidos possam prever como nós reagiremos a uma dada situação e permite a eles nos descrever para outras pessoas.
Embora nossa personalidade tenha esta característica de estabilidade e permanência, a ponto de que nossa reação, a determinadas situações possa ser previsível, a pessoa com uma personalidade saudável demonstra uma grande variedade de respostas às situações de vida e, principalmente, às situações estressantes.
Um transtorno de personalidade ocorre quando uma pessoa não pode mostrar tal flexibilidade e adaptabilidade. A falta de adaptabilidade e o limitado repertório de respostas frente às situações comuns de vida, e principalmente daquelas mais estressantes, torna-se uma importante fonte de sofrimento para o indivíduo e para os que estão à sua volta.
Sou muito favorável aos esclarecimentos prestados à comunidade, mas desde que os esclarecimentos sejam apenas esclarecimentos baseados em dados científicos. Não acho correto que alguns conhecimentos possam servir para desculpar ou ainda justificar as pessoas pelas crueldades e roubos que cometem.
Os transtornos de personalidade tornam-se reconhecíveis na adolescência, ou às vezes antes, e permanecem pela maior parte da vida adulta. São padrões desadaptados, inflexíveis, muito enraizados e de severidade suficiente para atrapalhar o funcionamento da pessoa e trazem muito sofrimento.
O diagnóstico de transtorno de personalidade pode indicar que o paciente tem um elevado risco para cometer suicídio, afeta o curso e prognóstico de doenças co-existentes, destaca importantes fatores etiológicos – causadores – informa ao clínico acerca da evolução e prognóstico do paciente, indica áreas de importante disfunção nos papéis sociais, familiares e ocupacionais e ajuda o clínico na administração global do tratamento.
O texto ficaria muito extenso se eu fosse falar de todos os transtornos de personalidade, incluindo estes e outros. Irei falar do transtorno de personalidade borderline por ser o mais intrigante, misterioso e desafiador de todos. Depois dele, um dos mais importantes, sem dúvida, é o transtorno de personalidade antissocial.
Entre as principais características do antissocial temos: desrespeito brutal aos direitos e sentimentos dos outros, ausência de sentimento de culpa e remorso, insensibilidade com os outros, incapacidade de planejar o futuro, incapacidade de aprender com a própria experiência de erros e fracassos
Transtorno de personalidade borderline – TBP
O borderline, do inglês "fronteira", é caracterizado por uma fragilidade psíquica importante predominantemente em mulheres. A pessoa sente-se abandonada ou rejeitada, tornando-se auto ou hetero agressiva, verbalmente e até fisicamente em casos extremos com liberação de emoções e impulsividade.
Por que o transtorno de borderline atinge mais as mulheres?
É ainda um assunto controverso. As mulheres costumam, em geral, sofrer mais intensamente do que os homens, por questões vivenciais, culturais, de personalidade e sociais, de um sentimento de abandono, real ou imaginado. Seja qual for, tal sentimento de abandono detona a impulsividade e a instabilidade afetiva, duas características principais do transtorno de personalidade borderline. O borderline é uma doença do vínculo, as mulheres sofrem mais. Nas mulheres, é mais comum a autoagressão e automutilação.
Os critérios atuais que os médicos devem usar para diagnosticar um transtorno borderline da personalidade são os do DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico em Saúde Mental, da Associação de Psiquiatria Americana).
Entre os critérios temos:
Um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, auto-imagem e afetos, com acentuada impulsividade começando no início da vida adulta, e presente numa variedade de contextos, como indicado por cinco (ou mais ) dos seguintes:
1 – Esforços desesperados para evitar abandonos reais ou imaginários das pessoas próximas ou mesmo no trabalho e escola.
2 – Um padrão de relações interpessoais instáveis e intensas caracterizadas pela alternância de extremos de idealização e desvalorização. Por exemplo, refere-se à forma como, por exemplo, a mulher vê o outro (marido) no contexto do relacionamento afetivo, ora idealizando-o (ninguém tem o poder de manter-se intacto com tanta idealização, ninguém é perfeito), ora desvalorizando as atitudes do outro. Tais comportamentos geram frustrações e sentimentos de abandono, detonadores dos impulsos dos borderlines.
3 – Perturbações de identidade:
Auto-imagem e sentido de self (sentido de ser a própria pessoa, contato com a interioridade) acentuadamente e persistentemente instáveis.
4 – Impulsividade em pelo menos duas áreas que são potencialmente lesivas à pessoa (self ): compras, sexo, abuso de substâncias, direção perigosa e exageros alimentares.
5 – Comportamento suicída recorrente, com tentativas e ameaças ou comportamento auto-mutilantes.
6 – Instabilidade afetiva devida à acentuada reatividade de humor (por exemplo disforia episódica – tristeza acompanhada de irritabilidade e ansiedade esporádicos. intensa, irritabilidade ou ansiedade usualmente durando poucas horas e só raramente mais que uns poucos dias).
7 – Sentimentos de vazio crônicos.
8 – Raiva inapropriada e intensa ou difícil de controlar (por exemplo ataques frequentes de mal humor, raiva constante, agressões físicas repetitivas).
9 – Ideação paranoide passageira, relacionada ao estresse ou sintomas dissociativos severos.
Na ideação paranóide a pessoa se sente prejudicada ou até mesmo perseguida pelas atitudes do outro.Tudo é indício e reforço do sentimento grande de abandono percebido pelo borderline. Sintomas dissociativos referem-se a sintomas relacionados a conflitos inconscientes não elaborados. Dissociação é uma interrupção da integração das funções da consciência, da memória, da identidade e da percepção do ambiente. Como parte do processo de dissociação os sintomas podem incluir despersonalização – a sensação do processo mental estar separado do resto do corpo, ou desrealização – a experiência em que o mundo parece estranho ou irreal. Ambas as situações estão relacionadas a estados de ansiedade. Há pessoas que chegam a ter perda de memória, paralisia, dores musculares. Ou seja, sintomas físicos na esfera somática, na tentativa de "fuga" de tais conflitos psicológicos existentes. Isso depende da estrutura de personalidade de cada pessoa, cada qual tem uma vulnerabilidade, uma sensibilidade específica. É mais comum em momentos de muito estresse. Tais pessoas geralmente têm poucos recursos para gerenciarem os conflitos existentes.
O diagnóstico de borderline pelo médico continua sendo uma questão muito complexa, apesar das diretrizes que em muito ajudam, e deve ser feito por profissionais que tenham um sólido conhecimento dos transtornos de personalidade, um método sistemático de avaliação e muita experiência em lidar com pacientes com estes transtornos. Aspectos sociológicos, culturais e antropológicos deveriam também ser enfatizados quando analisamos a corrupção.
É importante notar que o diagnóstico de borderline é feito pela presença de uma variedade de traços e não por um critério isolado. No entanto, merece ser destacado no diagnóstico o esforço desesperado que o portador do transtorno faz, para evitar o abandono real ou imaginário e a gravidade das alterações das relações interpessoais, sejam na família, escola, trabalho e lazer e, posteriormente, estas perturbações aparecem também com os profissionais que se aproximam para oferecer tratamentos.
A característica mais comum da pessoa portadora deste transtorno é a de uma pessoa com graves alterações em várias áreas do seu funcionamento:
– Escolaridade interrompida, sem uma carreira profissional definida.
Os objetivos mudam rapidamente e nada é levado adiante. São pessoas que estão muito defasadas com os pares que não tiveram interrupções nas suas metas. Tais pessoas ficam prejudicadas nas suas evoluções pessoais e profissionais, quando comparadas com o cônjuge, que geralmente, mantêm o curso natural da vida, independente do processo de doença. Toda doença mental prejudica o constante crescimento interno, as pessoas ficam estagnadas, isso gera, quando não há o tratamento adequado, uma defasagem ampla em relação ao parceiro (a) não acometido (a). Tal situação costuma gerar vários atritos.
– Relações interpessoais muito perturbadas dentro da família e fora dela. Brigas constantes e agressões físicas não são raras. Qualquer atrito com um chefe ou supervisor adquire uma proporção muito grande, levando o abandono do trabalho. A relação com professores é complicada e tumultuada, dificultando o prosseguimento de estudos. As relações de amizade são quase inexistentes.
– É frequente o envolvimento com bebidas alcoólicas e outras drogas, o que às vezes leva a extremos de violências e envolvimento em atividades ilegais. A droga é um grande complicador para quem já tem um funcionamento bastante precário.
– Histórico de tentativas de suicídio e ameaças constantes em relação a esta possibilidade. Algumas são tentativas sérias e outras são apenas para manipular e controlar pessoas à volta.
– Condutas automutilantes como cortes e queimaduras.
– Variação muito grande no humor, com frequentes ataques de fúria, que em geral são de curta duração.
– Condutas manipulativas – os borderlines estão sempre negociando com as pessoas à sua volta, não para obter vantagens ou tirar proveito dos outros, mas para tentar uma afirmação de si próprios. Eles parecem estar sempre perguntando ´´Quem está no controle da definição desta situação, de mim mesmo. E da realidade?“
Como ficam extremamente fixados nesta questão do exercício de controle, de poder e competência, há um grande prejuizo para as relações interpessoais e a conquista de realizações pessoais e materiais.
Em resumo, são pessoas que tem seus familiares e pessoas próximas aterrorizadas por suas condutas agressivas, sua imprevisibilidade, suas rápidas mudanças, seus ataques de ira, suas ameaças de uicídio, de automutilação e provocação de acidentes. E o mais complicado, é que tudo isso se alterna com momentos em que a pessoa é afavel e carinhosa.
O início das manifestações do transtorno de personalidade borderline ocorre na adolescência ou início da vida adulta (raramente antes). É um início tumultuado, explosivo, com grandes manifestações de cóleras e condutas muito agressivas, comportamentos perturbadores e destrutivos, ameaças de agressões, de suicídio e automutilação.
São frequentes as agressões verbais e físicas a familiares e pessoas próximas. Podem ocorrer fugas e envolvimento com drogas, furtos em casa e fora dela.
Frequentemente, há a necessidade de internação nesta fase. Quando ela ocorre, a pessoa pode permanecer até dois anos após a alta, ainda com várias áreas de funcionamento prejudicados. Os cinco primeiros anos são em geral os mais complicados.
Uma pergunta que sempre passa pela cabeça das pessoas é como este transtorno se inicia e também, se devido às suas manifestações, podemos dizer que a situação é muito desesperadora e que as perspectivas futuras serão negativas?
Os conhecimentos mais recentes mostram que, mesmo com toda a conturbação e sofrimento que o portador do TBP causa a sí próprio e a seus familiares, o curso do transtorno não é tão negativo como se pensava antes. Hoje, sabemos que o risco maior de completar o suicídio no TBP é nos 5 a 7 anos do início da manifestação. Depois, o risco cai muito. Sabemos também que 10% das pessoas com TBP completam o suicídio.
Isto nos permite ver as possibilidades de melhora e mudanças no curso do TBP de uma maneira mais otimista do que era visto no passado. Tudo isto tem uma boa repercussão ao manter a esperança nos médicos, nos pacientes e nos familiares.
São tratamentos complicados e frequentemente invadidos pelas dificuldades de relações interpessoais do portador do TBP. Fazer o médico fracassar em suas tentativas de ajudar, torna-se geralmente o item mais importante. As queixas e reclamações são frequentes e, em seis meses, a metade dos pacientes que inicia um tratamento já terá abandonado. Estima-se que apenas 10% dos pacientes façam um tratamento até o final.
Os tratamentos que apresentam os melhores resultados são aqueles que envolvem psicoterapia, medicação (quando indicado), orientação ou terapia familiar e medidas de reabilitação.
Esses procedimentos diminuem o sofrimento do portador do TBP, ajudam as famílias que estão na linha de frente de problemas muito difíceis e ajudam o paciente a transpor o período mais tumultuado de seu transtorno. Aqueles que ultrapassam o período de maior risco de suicídio, automutilação e envolvimento com drogas, têm mais chance de chegar ao período de estabilização.
Os tratamentos servem também para criar conhecimentos e desenvolver a experiência dos profissionais envolvidos neste trabalho, com benefícios para os pacientes que virão.
Compreender a origem ou as causas dos transtornos de personalidade é uma das áreas de maior desafio para pesquisadores e clínicos. Os modelos causadores devem ir além das relações lineares de causa-efeito para integrar um espectro de fatores bio-psico-sociais. Em relação às causas, devemos ressaltar que os fatores genéticos desempenham um papel importante.
O TBP é cinco vezes mais frequente em pessoas que tem um parente de 1º grau com o transtorno. O impacto do ambiente familiar no desenvolvimento da criança também é um fator causal importante. Cerca de 80% dos pacientes com TBP veem o casamento de seus pais como sendo de natureza conflitual. Por fim, fatores sociais mais amplos tais como mudanças sociais rápidas – que interferem na transmissão intergerações de valores – têm um papel causal, além dos fatores psicológicos e constitucionais.
Os atendimentos clínicos e as pesquisas mostram consistentemente que a carga suportada pelos membros da família afetam a comunicação e o desempenho dos papéis familiares, trazendo tensões enormes que podem levar a separações conjugais e outros problemas na convivência familiar.
Encerrando este artigo sobre TPB, motivado pelas matérias que associam doença mental à corrupção, envolvendo três tipos de transtornos de personalidade, inclusive, o borderline, observo um triste contraste: estamos diante de uma população que aposta e se baseia na proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, ocorre uma violação sistemática destes direitos, quando tentam justificar grande parte dos roubos e da corrupção através dos critérios diagnósticos dos transtornos mentais. Há que se ter muito cuidado em assuntos tão complexos.
Do mesmo modo que precisamos considerar e nos responsabilizar pelos corruptos que nós elegemos para o nosso país, precisamos considerar também que é injusto e estigmatizante, para todos os portadores de transtornos mentais, considerarmos tais corruptos, autores de graves infrações penais, como pessoas que têm sempre algum transtorno de personalidade. Tal generalização é extremamente deletéria.