por Roberto Goldkorn
Minha filha está estudando fonoaudiologia, aliás está adorando. Todos os dias vem da faculdade cheia de histórias e casos, que discutimos com entusiamo. Semana passada veio com uma história muito interessante, da qual eu imediatamente me apropriei. Disse-me ela, que estando com a sua turma, numa comunidade carente, uma moradora chegou na professora com uma queixa:
– Dra. o meu filho Zezinho, tá com algum defeito de fala. Nós temos uma vizinha, e ele não consegue falar o nome dela direito, ele só fala 'Craudete'. Por mais que eu corrija, ele só chama ela assim, 'Craudete, Craudete'. Ela deve até ficar chateada, coitada da Claudete.
Quando a professora ia se preparar para explicar que isso não era nenhuma doença, etc, etc… todos foram surpreendidos quando a mãe grita para o Zezinho que está brincando na rua de terra:
– Menino, trás essa bicicreta pra dentro já. Vai chover, não quero que a bicicreta fique aí fora!
O meu lado oriental, aquele de olhinho puxado, e cheio de zenzices, gostaria que o texto parasse aí, e de forma enxuta, enigmática como os haikais japoneses, deixasse para o leitor, todas e quaisquer deduções e conclusões. Mas o meu lado ocidental, prolixo, e derramado fala mais alto e me compele a desenvolver o tema. Assim digo que quase todos falamos bicicreta, e não compreendemos quando os nossos filhos, maridos, irmãos, alunos, saem por aí atirando a esmo craudetes, se drogando com craudetes, cometendo crimes bárbaros usando craudetes de grosso calibre privativas das forças armadas.
Nós simplesmente não entendemos, como aqueles que orbitam na nossa zona de gravitação possam desgarrar tão assintosamente, por que não nos percebemos cuspindo as bicicretas, ou então achamos que bicicreta tudo bem, mas craudetes não, de forma alguma – uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. E quando os meios de comunicação falsamente compungidos, dão as notícias sinistras das tragédias provocadas por craudetes fanáticas, nós não sabemos o que fazer, não sabemos o que pensar, e pensamos : "esse mundo está perdido, bicicreta, bicicreta, bicicreta e tal."
Não conseguimos ver e ouvir as nossas bicicretas, mas somos atingidos pelas craudetes, que apesar de não parecer à primeira vista, são filhas das bicicretas, pobremas, e sombrancelhas que vivemos espalhando inconseqüentemente (inconscientemente) ao longo dos caminhos. Mas isso, como disse a professora da minha filha, não é caso de fono, é caso de poliça.