Por Cybele Russi
Leio pela Internet a notícia abaixo e fico arrepiada até o último fio de cabelo:
"Segundo o Conselho Nacional de Consumidores, crianças de pelo menos 10 anos estão viciadas em compras na Grã-Bretanha".
De acordo com o Conselho, aos 10 anos, as crianças já se tornaram shopaholics (viciados em compras), por causa dos efeitos da propaganda e da pressão dos amigos.(…)
"Aos 10 anos, a maioria já foi seduzida pelo mundo das marcas da moda e dos pequenos aparelhos eletrônicos", disse Philip Cullum, vice-diretor do Conselho.
O Conselho pesquisou mil jovens na Grã-Bretanha, de idades entre 10 e 19 anos.
"A maioria delas diz que nós, adultos, compramos coisas sem necessidade, mas quando chega na vez deles irem às lojas, eles simplesmente não conseguem parar", disse."
A notícia em si não traz nenhuma novidade. Numa sociedade de consumo como a nossa, onde o ter é reverenciado como um deus, crianças com 10 anos de idade viciadas em compras são absolutamente previsíveis. Não se poderia esperar outra coisa. Ser consumista numa sociedade de consumo é o óbvio.
O que causa arrepios na notícia não são as crianças viciadas em compras, mas tudo o que está por trás disso, tudo o que as pessoas parecem não enxergar, ou fingem não enxergar. A gravidade está nas conseqüências disso para a formação da criança como pessoa.
Quando uma criança de 10 anos já está viciada em compras está apresentando um comportamento típico de adulto. Fazer compras não é, ou não deveria ser, uma atividade infantil. Ao mundo infantil diz respeito o vício por colecionar figurinhas, papéis de carta, presilhas de cabelo, miniaturas; brincar, jogar, pular, correr, cantar, dançar, dramatizar, pintar, desenhar e tudo aquilo que entendemos como infância. Fazer compras não está dentre as atividades infantis. Mas cada vez mais cedo as crianças estão deixando suas atividades infantis de lado e assumindo, também mais cedo, atividades de adultos. O que está acontecendo com a infância de nossas crianças, que está ficando cada vez mais curta e desrespeitada?
Tudo bem, elas estão mais precoces. Dizem aos dois anos de idade coisas que uma criança de cinco não diria no passado. Mas até que ponto isso é bom? Até que ponto nós, adultos, não encorajamos e estimulamos essa precocidade? Será que ser precoce é uma vantagem, é uma qualidade positiva? Quem disse que é melhor perder a infância mais cedo e entrar logo na vida adulta? E essa precocidade toda, adquiriram onde e com quem? Já nascem assim?
Segundo os estudiosos e especialistas no assunto, não existe nenhuma vantagem na precocidade infantil, pelo contrário, só há desvantagens. O ideal seria que se pudesse estender ao máximo o período da infância, pois, segundo tudo indica, quanto mais intensa e proveitosa esta for, mais equilibrado e saudável será o adulto. Além disso, é durante a infância que a criança constrói seu caráter e os valores que irão alicerçar sua vida. Depois disso, o que vier é lucro. No entanto, não é isso o que vemos.
O que se vê hoje são crianças de seis, sete anos de idade tendo comportamentos de adultos, em atitudes que muitas vezes beiram o ridículo. Influenciadas pela TV, pela mídia, pela propaganda, e até mesmo pelos próprios pais, que estimulam certos comportamentos, a infância está sendo roubada e a imaginação usurpada.
Ir às compras e viciar-se em consumo parece ser o menos grave. Como a própria notícia diz, não é uma compra qualquer, de qualquer coisa, ou de brinquedos e bugigangas, que tanto fascinavam as crianças no passado, como os álbuns de figurinhas, os monstrinhos de borracha, os carrinhos match box, os acessórios do guarda-roupa da Barbie. São aparelhos eletrônicos e roupas de marca. E para quê uma criança precisa de um telefone celular, de um Palm Top, de um computador de última geração ou de uma roupa de marca?
Ela precisa para ser o emblema social de seus pais. Criança agora é outdoor da família. É através dela que os pais anunciam ao mundo seu status social e seu poder aquisitivo. A própria escola deixou de ser um lugar onde se vai para aprender, adquirir novos conhecimentos e fazer amigos. Virou ponto de encontro e indicativo de status social. E quanto mais cara e high tech for, melhor. Um escorregador, um balanço, um tanque de areia, salas arejadas, muito sol no pátio e uma biblioteca infantil não são mais suficientes aos nossos estudantes mirins, é preciso um enorme aparato tecnológico. Festinha de aniversário de criança virou evento social, com direito a whisky e Prosecco. E para quê tudo isso?
Eu digo para quê: para satisfazer as necessidades de um punhado de crianças que não conseguem mais aprender a ler e escrever, que não conseguem efetuar as quatro operações fundamentais, porque não têm imaginação, não têm criatividade, não têm fantasia; não sabem criar brincadeiras, não sabem reagir, não sabem questionar nem criticar; não criam heróis imaginários e se sentem envergonhadas de uma festa de aniversário em casa, com balas de coco enroladas em papel de seda, cachorro quente, brigadeiros e línguas de sogra. Mas quem vai querer uma festinha em casa, com brigadeiros que a mãe passou a noite toda enrolando, um bolo de chocolate presenteado pela avó e as centenas de bixigas que o pai assoprou até perder o fôlego, se é bem mais legal uma festa hollywoodiana no buffet da esquina, com garçons e seguranças na porta?
Ler, escrever, somar, dividir, multiplicar, inventar histórias e desenhar não sabem. Mas sabem exigir, cobrar, fazer birra, e passar madruagadas inteiras à frente da telinha se atualizando sobre os novos lançamentos dos Shop Tour da vida. É duro ter que dizer isso, mas essas crianças não nasceram assim, não nasceram mesmo. Elas são fruto da cabeça dos pais. São literalmente uma invenção da mídia e do marketing com o aval dos pais. Não são apenas consumistas. São consumidas, consumíveis e até que ponto, não sei dizer, já consumadas. Crianças com a infância consumada. Esta foi a verdadeira notícia que tanto me arrepiou.