por Monica Aiub
Durante séculos exploramos nossos recursos naturais acreditando que eles eram inesgotáveis. A mentalidade de nossos colonizadores era explorar ao máximo todos os recursos disponíveis, fossem eles naturais ou humanos. Explorar sem se preocupar com as consequências e, uma vez esgotados, partir para a conquista de novas regiões.
Não se tratava, contudo, da existência nômade dos povos que aqui habitavam. Indígenas que percorriam o território permitindo que os ciclos da natureza se consolidassem, restaurando a terra, as águas, os recursos naturais. Não se tratava de coabitar um local, de pertencer a ele. Tratava-se de explorar e enriquecer, acumular riquezas, ainda que estas fossem fruto da destruição de civilizações inteiras.
Hoje, ao observar a forma como lidamos com nossos recursos – naturais e humanos -, cabe questionar: teríamos nós herdado a mentalidade de exploração de nossos colonizadores? Lembramos nós, que a terra que exploramos é a mesma que habitamos e que nos permite a manutenção da vida? Lembramos que sem ela não há vida?
A crise hídrica instaurada em São Paulo nos provoca a pensar em nossa forma de lidar com a vida. A água, recurso natural abundante em nosso país, já se fez escassa em várias regiões. Sabemos que isso se deu devido à exploração desenfreada da terra, ao desmatamento das regiões de manancial, à devastação das florestas etc, afinal, "recursos naturais sempre estarão a nosso dispor", defende a mentalidade do colonizador, "e se não estiverem aqui, não é problema nosso", prossegue a mesma mentalidade.
Pensar a terra como nossa casa, como parte de nós, e não como um objeto ou um ser que pode ser infinitamente explorado, não é algo comum em nossa sociedade. A mentalidade do lucro e do enriquecimento em detrimento da vida – desde que esta vida não seja a minha – é a mentalidade comum na sociedade vigente.
Assim, ainda que já tenhamos vivido em nosso país situações anteriores de escassez de água, a mentalidade hegemônica foi (e ainda é em muitos contextos): "não tenho nada a ver com isso", externalizando o problema como se não fosse problema nosso.
Por outro lado, um país como o Brasil, com tantos rios que o atravessam; uma cidade como São Paulo, com grandes rios que a atravessam, precisa se preocupar com a água? Por que um país que possui uma Amazônia precisa se preocupar com o desmatamento? Afinal, há tanto "mato" por ai?
Olhar individualista
O olhar extremamente individualista não é somente herdado pela mentalidade colonizadora, ele é intensificado pelo desenvolvimento da sociedade moderna, que constituirá o modo de vida contemporâneo. Somos, cada vez mais, formados para pensar em nós, em nossas necessidades, em nosso lucro, em nossas questões, em nossos benefícios. Mas dificilmente compreendemos que as questões coletivas também são nossas, que o benefício coletivo também é nosso.
Ouço alguns paulistanos dizendo a outros: "Você está vivendo um difícil problema de falta de água", como se este não fosse um problema seu também. Enquanto sua torneira não seca, o problema não existe. Utilizo o exemplo da água por ser a questão do momento, mas a mentalidade pode ser observada em diferentes situações: enquanto não me atinge diretamente, o problema não existe.
A mentalidade antropocêntrica e individualista já foi bastante criticada, contudo ela permanece hegemônica e é incentivada em muitas instâncias de nossa sociedade. A consequência disso é que tanto os problemas como as soluções são pensados isoladamente, e há casos em que isso não se aplica.
No exemplo aqui utilizado, a questão da água em São Paulo, o problema é muito mais amplo. É comum ouvirmos que a responsabilidade é do consumidor individual, que precisa armazenar e economizar, ou que a responsabilidade é de "São Pedro", que não manda chuvas, reconstruindo a mentalidade mítica em que tudo o que se passa conosco é vontade dos "deuses"; e que assim como eles geram os problemas, nos trarão as soluções, boas ou não para nós, de acordo com suas vontades.
Se assim fosse, restaria-nos rezar e aguardar a intervenção divina. Por outro lado, pensar que o problema é uma questão de responsabilidade individual, nos levará a vigiar e punir nossos vizinhos por seus banhos um pouco mais demorados, ou por que estão utilizando muitas vezes ao dia suas descargas sanitárias.
Outra forma comum para enfrentar a situação é pensar que crise é oportunidade. E assim, muitos ficam felizes com a escassez de água, e com outros problemas que assolam a coletividade, porque seus negócios poderão deslanchar a partir da crise.
Armazenar e economizar água podem ser soluções individuais para evitar um problema maior em nossas casas. Contudo, tais atitudes não têm impacto sobre a questão ambiental mais ampla: nossos córregos e rios poluídos, um saneamento básico que coleta e não trata, ou que nem sequer coleta, a venda de água com desconto para grandes consumidores com alto consumo (Programa Demanda Firme da SABESP), os interesses dos acionistas das empresas de abastecimento de água, os interesses das empresas de dessalinização ou talvez até a futura comercialização da máquina de Bill Gates que transforma fezes em água, entre outros problemas.
A grande questão parece ser como lidamos com nosso planeta, com nosso entorno. Como cuidamos de nossa vida em comum, de nossas relações com o outro e com o mundo. É fundamental que assumamos nossa responsabilidade individual sobre nossas ações, mas não podemos esquecer que vivemos num mundo que é habitado por outros seres, humanos ou não, e que as implicações de nossas ações na coletividade implicam em consequências para nós e para os outros, assim como as ações de outros implicam em consequências para nossa vida. Não é possível pensarmos o mundo somente a partir de nossos referenciais, nem tentar encontrar solitariamente soluções para problemas que demandam ações coletivas.
Há, obviamente, pessoas eleitas por nós para cuidar das questões coletivas, mas uma democracia não funciona sem participação popular. Se essas pessoas não cumprem suas tarefas, precisam ser cobradas e responsabilizadas por isso, cuidar de nossos recursos naturais e humanos é tarefa de todos nós, e sobretudo, responsabilidade de nossos governantes.
Enquanto não entendermos que dependemos da natureza e do outro para viver, e que não podemos simplesmente explorá-los sem consequências, problemas tão ou mais graves que estes surgirão em nossas vidas.
Ecologia e economia são palavras que possuem origem grega. Oikos, palavra grega que dá origem a ambos os termos, significa casa. Conhecer (logos) e cuidar (nomos, que significa regras) de nossa casa é fundamental. E nossa casa não é apenas a habitação na qual vivemos. É também o corpo, a sociedade, o planeta em que vivemos.
Utilizar o discurso ecológico como fonte de lucro, sem ações que de fato cuidem de nosso planeta, de nossa sociedade e de todos os seres envolvidos direta ou indiretamente no processo produtivo tem sido uma constante. É preciso repensar como lidamos com nossos recursos – naturais e humanos – se quisermos garantir a continuidade da vida.