Por Monica Aiub
Já tratei muitas vezes, nesta coluna, da filosofia clínica, trabalho que exerço há mais de 20 anos. O que é isto? Um dos primeiros textos que escrevi para o Vya Estelar tratava desta questão. E ela continua surgindo. Mas tem surgido de tal forma que hoje eu mesma me pergunto: “O que é isto, a filosofia clínica?”. É interessante poder se dar ao luxo de perguntar, como disseram Deleuze e Guattari em “O que é a Filosofia?”, o que é isto que fiz durante minha vida inteira, mas não uma pergunta por mero estilo, uma questão de fato… não cheguei, ainda, ao momento de dizer “minha vida inteira”, talvez ainda me restem alguns anos de atividade, mas já me permito questionar o que fiz nos últimos 20 anos.
De alguns anos para cá, percebi que há muitas práticas que recebem o nome de filosofia clínica. Pensei, a princípio, haver uma filosofia clínica brasileira, mas mesmo no Brasil, há muitas práticas que recebem este nome, algumas advindas inclusive das mesmas fontes, embora muito distintas entre si. Eu mesma me surpreendo quando me deparo com ex-alunos que atuam com filosofia clínica de modo completamente diverso ao que propus, e ainda assim mantém o nome e uma espécie de “marca”.
Em 2004 publiquei o livro “Para entender Filosofia Clínica: O apaixonante exercício do filosofar” (WAK). Nele eu apresentava a filosofia clínica como o exercício do filosofar abordando questões cotidianas, ou seja, filosofia clínica é filosofia! Cometi o equívoco de acreditar que isso era um ponto comum entre os então filósofos clínicos. Demorei muitos anos para descobrir que, de fato, as práticas eram diferentes e a maior parte delas não possuía algo de filosófico além do nome filosofia. Depois de um longo período de “choque”, de contextualização e pesquisa sobre este fenômeno, conclui que tais práticas se inserem num movimento não filosófico que se afirma filosofia.
Filosofia exige reflexão e rigor metodológico
Isto pode parecer confuso, mas a ideia é a seguinte: a filosofia é um conhecimento construído na história da humanidade, que exige reflexão e rigor metodológico em suas pesquisas. Nada, em filosofia, é aceito sem suas devidas justificativas, que devem ser suficientemente e racionalmente expostas para que o interlocutor compreenda como é possível chegar àquelas conclusões. A filosofia é também um saber contextualizado, que observa as relações entre as partes e o todo e, principalmente, a filosofia busca a raiz, a origem das questões e seus processos de desenvolvimento, para que nos apropriemos delas de modo a encontrarmos ou compormos formas para lidar com tais questões. Embora não haja consenso acerca das definições de filosofia na tradição, estes elementos são comuns a todas elas.
Porém, nos tempos atuais (e em tempos antigos isto também ocorreu), é comum encontrarmos pessoas que se intitulam filósofos, muitos sem uma formação adequada, sem estudos específicos em filosofia que lhes permitam atender, em seus raciocínios, as exigências específicas do filosofar. Estas pessoas, em sua maioria, apresentam uma “filosofia” dogmática, isto é, uma “filosofia de vida”, ditando regras sobre como as pessoas devem pensar, sentir, agir. Uma das características destes movimentos é o fato de fazerem uso de nomes de conceitos filosóficos, citarem descontextualizadamente os filósofos, criando a falsa aparência de um discurso filosófico, quando, na verdade, possuem outros objetivos. Incluem-se, nestes discursos, as expressões “pensar por si mesmo” ou “autonomia do pensar” – expressões caras à filosofia – mas estas, em vez de corresponderem ao desenvolvimento do rigor metodológico necessário ao pensar filosoficamente, da investigação minuciosa e séria a que se dispõe a filosofia, dizem respeito à reprodução irrefletida de tais discursos. Pensar criticamente, para tais pessoas, é pensar como elas pensam, é reproduzir suas ideias e, consequentemente, agir e difundir ações em favor delas. E isso em nada corresponde à filosofia.
Falsos filósofos
Quando estes falsos filósofos vão para os consultórios, em vez de auxiliar a pessoa a pensar sobre suas questões e encontrar formas para lidar com elas, conduzem-nas à escolha de caminhos que de alguma maneira os beneficiam – ainda que o façam visando “boas intenções” – e isto tem consequências para as pessoas envolvidas e para a sociedade como um todo. Quando estes falsos filósofos atuam em mídias digitais, empresas ou instituições públicas, fazem o mesmo, mas as consequências de suas interferências atingem um número bem maior de pessoas.
Isto não é prerrogativa apenas da filosofia, os falsários estão em todas as áreas. Em tempos de velocidade e variedade de informações, em tempos de pós-verdade e tribalismo da verdade, abandonar os critérios de investigação em favor do critério de quantidade de cliques, curtidas ou repetições de um discurso é correr o risco de sermos conduzidos para um futuro sombrio, e pior, com nosso assentimento.