por Roberto Goldkorn
Você está rezando para o deus certo?
Uma vez ouvi esse comentário. Uma moça diante da crise de choro explícita de sua colega de trabalho (minha cliente) disse isso.
Era uma clara alusão à relação da chorosa colega comigo – o perigoso representante do deus errado! Obviamente a jovem que fez a pergunta acusatória rezava para o “deus certo” e estava muito segura disso.
Outra cliente vê seus 40 anos se aproximarem em alta velocidade e se desespera porque olha à sua volta e vê suas amigas, algumas bem mais novas, casadas e com seus filhos pendurados a tiracolo. Ela não se sente incluida nesse clube das mulheres “para casar” e brada aos céus: “Por que meu Deus, por que eu não?”
Nossa cultura (quando digo nossa, incluo a cultura de todas as sociedades) é tirânica quando institui padrões para serem seguidos. Se você é muito pobre deve morar em determinados bairros, curtir determinados tipos de música e se vestir de forma a refletir seu status de pobre. Mas se é rico, se espera que more no bairro certo, e obedeça ao dress code (código de vestimenta) de sua classe; seja em Dubai ou no Rio de Janeiro.
Claro que não podemos colocar essa acusação de ditadura social apenas na conta da cultura e de seus paus mandados: a mídia, a indústria da moda, a publicidade, as religiões etc. Há um componente espiritual nessa necessidade de pertencimento/identificação (e por conseguinte de exclusão do outro).
Na India milenar, a sociedade era dividida de forma radical em castas. Se o sujeito nascesse na casta dos Intocáveis teria de passar a vida limpando latrinas e se humilhando diante das castas superiores – sem direito à prescrição de pena, sem direito à migração por mérito para outras castas mais confortáveis. E não se podia culpar a mídia ou as traquitanas da modernidade por isso.
Romeu era de uma família inimiga da outra na qual havia nascido Julieta. Ao nascer herdou seu pertencimento e o ódio protocolar à outra família. E o amor dos dois, o que tinha a ver com isso? Shakespeare disse a Romeu: “Perdeu playboy, o sistema é neurótico”.
Mas como já disse antes, não se pode creditar na conta da sociedade essa pegadinha perversa: nós aprendemos com a natureza e com os animais e isso se tornou “espiritual”. Vivemos muito mais tempo com nossos “professores” bichos e plantas que como civilização.
As matilhas de lobos defendem seus membros e seu território, com garras e dentes. Os chimpanzés, tão engraçadinhos, formam gangues que podem agredir e matar outros indivíduos só por não pertencerem aos seus clãs familiares.
A natureza nos ensinou direitinho que tudo é compartimentado e, ou você pertence a um compartimento ou está por sua conta, quer dizer, está ferrado.
Em muitas culturas existem até denominações (quase sempre com conotações pejorativas) para os “outros”. A isso um psicólogo/filósofo (Carl Rogers) chamou de etnocentrismo.
Não estar sob a proteção de uma determinada subcultura, não ter a carteirinha de algum poderoso clube, não “rezar para o deus certo” pode ser perigoso, e no mínimo causará a desconfortável sensação de indigência.
Porém, se olharmos com mais atenção a história da humanidade, vamos ver que é justamente isso, esse sentido gregário animal o grande responsável pela nossa miséria humana, pelo sofrimento, pelas guerras, pelo dilaceramente coletivo e pela infelicidade individual. “O homem é o lobo do homem” como disse o filósofo inglês Thomas Hobbes, e ele estava mais certo até do que pensava.
Mas precisamos continuar a defender nosso território como lobos, ou defender nossa fé como cruzados? Precisamos dos nacionalismos quando hoje sabemos onde estamos, o tamanho do nosso planeta e sua finitude? Precisamos mesmo defender nosso deus, contra o deus dos outros? Precisamos agir como lobos ou chimpanzés, ou mais “modernamente” como os Montecchio ou Capuleto do imortal Shakespeare?
A resposta é, em quantas línguas existirem, NÃO!
O fato desse comportamento xenófobo, etnocêntrico ter sido herdado no pacote natural, não nos condena a ser seu prisioneiro, afinal somos homo sapiens ou deveriamos sê-lo.
Mas o que podemos fazer para nos libertarmos do jugo do pertencimento?
O que se pode fazer para deixar de ser membro ativo da matilha, agindo guiado pela mente grupal, contra tudo que não for “minha matilha”?
Infelizmente a resposta não é satisfatória e nunca coletiva. O processo evolutivo passa obrigatoriamente por essa desvinculção, mas ela terá de ser individual.
Se nos rebelarmos contra a ditadura da nossa escola de samba, se nosso pensamento divergir do da atual diretoria, vamos sair e criar outra escola de samba: A Dissidente do Samba. E aí começa tudo de novo.
Só a libertação pessoal é viável. A opção por ser solteiro, ou por não ter time de futebol (talvez uma leve simpatia por dois ou três), por não se filiar nem à direita nem à esquerda (e assim poder transitar entre todas as direções) deve ser o que de mais profundamente Humano acontecerá na nossa evolução.
Quando o amor for mais importante que o antagonismo entre famílias ou religiões, quando a liberdade tiver seu real significado e não precisar de ser imposta, quando o meu deus estiver tão certo quanto o seu, aí estaremos nos aproximando da maturidade da humanidade.
Não viverei para ver esse dia, mas tudo bem há anos venho, pacientemente, fazendo o meu trabalho.