Depressão, sofrimento ou tristeza?

Depressão já foi assunto desta coluna algumas vezes, mas ainda precisamos falar sobre ela. Anunciada como doença do século 21, antes mesmo de completarmos a segunda década, os números são alarmantes. Segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde, em levantamento realizado em 2015, a depressão já atingia mais de 300 milhões de pessoas no mundo, equivalente a 4,4% da população mundial, sendo mais comum em mulheres. Cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano e esta é a terceira principal causa de morte de pessoas entre 15 e 29 anos. No Brasil, a depressão atinge cerca de 5,9% da população, quase 12 milhões de pessoas.

Os fatores geradores da depressão são complexos, muitas vezes associando elementos biológicos, psicológicos e sociais. Além disso, há síndromes de outra natureza que possuem sintomas similares aos da depressão, mas cujas causas, consequências e tratamentos são bem diferentes. Por isso, o primeiro passo, ao identificar os sintomas, é consultar um(a) médico(a) para fazer uma avaliação.

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Sintomas

Quais sintomas? Se você, com frequência, perde o interesse, o prazer por suas atividades habituais por um período de, pelo menos, duas semanas; se sente ansiedade, sofre com distúrbios no sono e no apetite, tem sentimentos de culpa, baixa estima, falta de concentração, talvez esteja com depressão ou com algum problema no funcionamento de seu organismo. A consulta a um(a) profissional é fundamental para descartar possibilidades de outras síndromes e verificar as melhores opções para tratamento em cada caso. Há diferentes tipos de depressão e, consequentemente, diferentes tipos de tratamento. Mas também há, ainda, preconceitos que impedem as pessoas de procurar ajuda.

“O normal e o patológico”

Canguilhem, médico e filósofo francês do século XX, no livro “O normal e o patológico”, demonstra que não é possível compreender um estado patológico em oposição a um estado normal, uma vez que aquilo que é definido como normal é um padrão estabelecido a partir o resultado de uma pesquisa estatística, realizada com algumas pessoas (obviamente considerando-se a amostragem adequada ao tipo de pesquisa). Ele define o patológico em oposição a um estado habitual, marcado por sofrimento, impotência, sentimento de vida contrariada.

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“A anomalia é a consequência da variação individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo. […] No entanto, diversidade não é doença. O anormal não é o patológico. Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada.” (CANGUILHEM, 2010, p.96).

Distinção entre sofrimentos

É importante distinguirmos o sofrimento, que é parte da existência – a impotência que sentimos diante de fatores sociais, políticos e econômicos – do sofrimento e da impotência gerados por uma depressão. Horwitz e Wakefield (2010), no livro “A tristeza perdida”, apontam o aumento do número de casos de depressão a uma confusão entre o que denominam “tristeza normal” e o transtorno depressivo.

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Diante dos dados, muito se fala da depressão, mas o que é a “tristeza normal”? Segundo Horwitz e Wakefield, há três componentes importantes para caracterizar a tristeza: “é específica ao contexto; tem intensidade mais ou menos proporcional à perda que a provocou; e tende a desaparecer quando a situação de perda termina ou diminui pouco a pouco…” (2010, p. 41-42).

Perdas e fracassos são parte da vida: a doença inesperada; o falecimento de uma pessoa querida; o trabalho que não deu certo; o desemprego que chegou; a falência nos negócios; o relacionamento que terminou; a mudança nos contextos sociais gerando alterações repentinas na vida… Podemos aprender com eles. Eles podem nos fortificar, mas isso não retira a tristeza gerada por eles. Sofremos com isso, nos sentimos contrariados(as), muitas vezes impotentes.



Estresse pode gerar tristeza

Outro fator gerador de tristeza é o estresse. Quando ficamos submetidos(as) a situações estressantes por muito tempo, sem perspectiva de mudanças, entristecemos. A desesperança na solução de um problema pode ser geradora de sofrimentos, de sensação de vida interrompida por falta de possibilidades.

Contudo, o sentimento de tristeza gera um incômodo tal que nos move a buscar soluções, a nos reinventar, a modificar nossos contextos. Com os contextos modificados, ainda que por vezes lamentemos o que não deu certo na vida, a tristeza, a dor, o sofrimento, o sentimento de impotência e de vida contrariada diminuem e nosso organismo volta a funcionar em seu padrão habitual, às vezes com algumas modificações, mas com o que poderíamos avaliar ser um bom funcionamento.

Nossa sociedade muda muito rapidamente. Nossas opções de trabalho, nossos modos de relacionamento, nossas formas de viver são alteradas numa velocidade estonteante. Nem sempre conseguimos acompanhar a velocidade das mudanças, nos sentindo perdidos, jogados num mundo sem perspectivas. Talvez este contexto esteja gerando tanta tristeza que poderíamos falar de uma “epidemia” de depressão. “Não quero viver neste mundo” é uma frase que ouço com certa constância no consultório.

Mas… Como é o mundo em que queremos viver? Como podemos nos apropriar de um conhecimento sobre as mudanças, quem e o que as geram? A quem este mundo que se constitui privilegia? De que maneira podemos construir uma vida cotidiana mais satisfatória, menos estressante e talvez, até, mais feliz?

Não há respostas prontas para isso. Precisaremos nos reinventar, aprender novas formas para viver os novos contextos que se apresentam. Mais do que isso, precisaremos compreender como as mudanças estão ocorrendo, para que possamos propiciar transformações necessárias para uma vida melhor para todos.

Se a questão é essa, investigar a realidade, as possibilidades, pode ser uma resposta. Mas se não há motivos para pensar em soluções, talvez seja o caso de uma ajuda especializada para investigar o que se passa com você. Talvez você não esteja triste, talvez esteja com depressão.

Tornou-se comum avaliarmos uns aos outros e a nós mesmos traçando “diagnósticos” que são mais equívocos do que qualquer outra coisa. Se você acredita que pode estar deprimido ou deprimida, procure um(a) médico(a). Um tratamento pode mudar muita coisa em sua vida, mas a falta dele pode colocar sua vida em risco.

Referências:

CANGUILEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

HORWITZ, A. V.; WAKEFIELD, J. C. A tristeza perdida: Como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo: Summus, 2010.

OPAS-BRASIL. Folha informativa: Depressão. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5635:folha-informativa-depressao&Itemid=1095. Acesso em 15 set 2019.

WORD HEALTH ORGANIZATION. Depression and other common mental disorders: Global health estimates. 2017. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/254610/who-msd-mer-2017.2-eng.pdf;jsessionid=380cee6fe15b2edeb3aa63a2f8534c4e?sequence=1. Acesso em 15 set 2019.