por Patricia Gebrim
Eu sou da época em que se comia macarronada com brachola aos domingos, a família italiana de grande porte e bochechas rosadas falava alto ao redor de uma mesa enorme, que ia de ponta a ponta da cozinha de minha avó, me deixando tonta com toda aquela animação. Sou do tempo em que as pessoas conversavam umas com as outras, muitas vezes fofocavam, sim… fofocavam… por mais “feio” que isso fosse. Sou do tempo em que as pessoas eram animadas, ou tristes ou tinham "gênio difícil". Nos almoços de domingo na casa de minha avó sempre tinha uma tia mal-humorada, um tio mais alegrinho, um primo aloprado.
Hoje em dia não se come mais macarronada com brachola, hoje ingere-se “carboidrato com proteína” (e contam-se as calorias, é claro!).
As pessoas hoje não conversam mais … “verbalizam”.
Não fofocam, aumentando um pouco o caso para tornar a história mais atrativa… não, hoje diz-se que as pessoas “deliram”.
Não entristecem … “deprimem”.
E se estão mais animadas do que o usual logo alguém cochicha:
_ Será que é “bipolar”?
Hoje em dia a tia não tem mau humor, tem “distimia”, e o primo adolescente meio aloprado tem um “transtorno de conduta”.
Hoje todos temos acesso à Internet, e a telinha do computador tornou-se o gênio da lâmpada, o instrumento mágico capaz de dar explicação a tudo. Para fugir à angústia do “não saber” nos apropriamos dos tão desejados rótulos, antes propriedade exclusiva de técnicos, médicos e psicólogos.
Se por um lado a informação flui de maneira mais democrática, será que estamos sabendo lidar com isso?
Ah … quer saber mesmo o que penso?
Quando, lá atrás, eu via a minha prima tristinha, sentada num canto da sala, no tão fogoso domingo de macarronada, eu me interessava mais…
_O que será que a deixou triste? _ pensava eu.
Procurava sentar-me a seu lado, puxar um papo qualquer com a esperança de que em algum momento ela se abrisse comigo.
_ Minha prima está triste e precisa de mim! _ eu pensava.
Hoje, se alguém está triste, pensamos:
_ É deprimido, precisa de um antidepressivo… o que posso fazer?
E, como se nada tivéssemos com isso, viramos as costas e continuamos babando em frente à tela do computador pesquisando o número de calorias contidas em uma taça de sorvete light.
O carinho que antes seria dado em função da tristeza alheia se transformou em cápsulas para depressão. E assim foi se perdendo a conversa amiga, o interesse genuíno, o abraço caloroso… fomos nos tornando frios, assépticos, distantes. Delegando aos médicos ou medicamentos a nossa parte de colaboração para o bem-estar daqueles que amamos. Como se hoje não tivéssemos mais tempo ou paciência para lidar com a dor alheia. Que pena.
Eu sei… muitas vezes a coisa é mesmo profunda, e até pode de verdade requerer um cuidado medicamentoso, mas será que não “perdemos a mão”? É claro que a possibilidade cada vez maior e mais específica de diagnosticar as patologias da alma tornou possível um maior entendimento e objetividade quando pensamos nos tratamentos propostos a cada caso, mas o excesso de intelectualização da dor humana nos distancia da pessoa que está lá, aprisionada sob aquela dor.
O que você pensa sobre isso? Será que não perdemos um pouco da nossa humanidade? Será que não andamos nos escondendo mais do que deveríamos atrás das caixinhas de antidepressivos e ansiolíticos??? Nos escondendo dos outros… nos escondendo de nós mesmos…
Pense nisso. As pessoas não são “depressivas”, “bipolares”, “distímicas”… as pessoas são … pessoas!
Pessoas imersas em algum tipo de sofrimento. Por baixo do rótulo a pessoa está lá, talvez esquecida de si mesma, esperando que alguém olhe para ela e a ajude a se reencontrar. A descrição das patologias deveria ser, a meu ver, apenas um mapa.
Mapas são úteis, mas tem suas limitações.
Quer ver? Ter em mãos um mapa que descreva com exatidão uma região montanhosa de Minas Gerais apenas serve para nos levar até lá. Mas se quisermos realmente saber como é uma verdadeira montanha mineira teremos que subir suas encostas ao entardecer, sentindo o cheiro de mato que a brisa traz, ouvindo o som dos pássaros, sentindo a firmeza da terra, absorvendo através dos nossos sentidos sua pulsação terrena, percebendo o que sentimos ao chegar ao topo. Aquela sensação boa de liberdade que abre o peito, a alegria quase infantil de ter vencido o desafio da subida… Mapa nenhum será capaz de nos fazer sentir isso. Mapa algum conseguirá nos tocar a ponto de termos vontade de escrever uma poesia, como às vezes acontece quando estamos sozinhos, envoltos por aquele fértil silêncio sagrado que costuma acontecer no topo de uma montanha.
(Se não der certo com a montanha, escreva em uma página de papel a receita de um pão de queijo e tente devorar o papel…)
Assim, paremos de descrever as pessoas. Deixemos isso aos técnicos.
Resgatemos a nossa humanidade, a nossa capacidade de amar.
Para amar uma montanha não precisamos saber seu nome, em qual altitude está ou sua extensão em quilômetros quadrados. Tudo o que temos a fazer é abrir-lhe as portas de nossa percepção. Estar lá, presente, sentindo… buscando sua beleza.
Pense nisso em seu próximo almoço de domingo, e se puder coma uma bela macarronada, dê uma boa gargalhada e abrace a sua tia mal-humorada até que aquele mau humor todo se transforme em um inesperado sorriso de satisfação.