por Regina Wielenska
“Problema complexo é quem congela seu existir para focar a vida toda na vingança”
Raros leitores haverão de se lembrar de uma novela de horário nobre da TV chamada “O Dono do Mundo”. Por que ressuscitar essa história hoje? Quero refletir sobre as prováveis consequências do desejo de vingança.
Primeiro convém rever o enredo criado por Gilberto Braga e Rodrigues Linhares, prá tudo ficar mais claro. Em termos gerais, a mocinha (interpretada por Malu Mader), às vésperas de se casar, torna-se alvo de uma cruel aposta acertada entre o poderoso e prepotente cirurgião plástico (personagem de Antonio Fagundes) e um amigo. Ele garantiu que levaria a mocinha pra cama antes mesmo que o noivo tivesse essa oportunidade. Se ganhasse a aposta, o amigos lhe pagaria em champanhe. Aposta ganha, através de ardis típicos de novela, a mocinha cai em absoluta desgraça (até o noivo se suicida), e se dá conta de quem era o culpado pela sua desdita.
A vítima/heroína passou meses a fio do tempo cenográfico, tentando fazer o salafrário pagar, com a prisão e perda do registro profissional, cada lágrima e parcela de amargor que assolou sua vida. Mais de metade da história transcorreu em meio a tentativas de encaçapá-lo. A sede de justiça tornou-se sede de vingança, virou uma tarefa pessoal, quase a ser executada pelas próprias mãos. Quanta energia gasta, e quantas outras dimensões da vida ficaram ao relento, por falta de cuidados por parte da protagonista. Por fim a vingança se estabelece, o psicopata perde tudo e cai em desgraça. Enquanto isso, ela despenca num vácuo existencial.
O que fazer agora com a vida que não mais lhe pertence?
Vingança posta, sucesso alcançado nessa empreitada, ficou então sem rumo, desconectada da própria vida. Como se isso não bastasse, ao final da novela, o salafrário tanto que fez que saiu da lama e virou a própria mesa: deu uma banana a todos e fugiu rumo a destino incerto, com dinheiro e aparentando felicidade. E a mocinha, como ficou? Durante a segunda metade ou terço final da novela, só lhe restou consertar a própria existência, rever metas, fazer o rescaldo, descobrir que rumos combinavam com sua condição presente.
Ao sermos injustiçados, faz sentido clamar e lutar por justiça. Raiva, frustração, desespero e desesperança também são estados de alma compatíveis com perdas relevantes, causadas pelo vil propósito de algum indivíduo que não se importa em causar danos a quem quer que seja, desde que isso o beneficie. O enorme problema não é a dor da perda, nessa hora humanos reagem mais ou menos do mesmo jeito, com uma fase de pesar e raiva. Problema complexo é quem congela seu existir para focar a vida toda na vingança. Há quem assassine o assassino, difame o difamador, nem que para isso precise ficar desatento às pessoas queridas, chegando a se equiparar ao causador da desgraça inicial. E, pior de tudo, há quem se esqueça de si, de seus valores mais fundamentais, de suas metas em consonância com esses valores. Nesse contexto vemos alguém que se escravizou à vingança, dedicou sua vida unicamente para algo que transcende a justiça, inutilmente.
É fascinante conhecer a biografia e a obra de Elie Wiesel, um judeu romeno que sobreviveu aos campos de extermínio nazistas. Dedicou sua vida de sobrevivente a caçar nazistas, submetê-los ao julgamento por órgãos internacionais voltados para crime contra a Humanidade. O prêmio Nobel da Paz, senhor Elie Wiesel fez muito mais, propagou valores grandiosos e de bondade, falou de fé na vida, fez infinito número de amigos, de etnias, nações e religiões distintas, inspirou gerações, teve uma riquíssima vida de atuação coletiva e reconstruiu sua vida pessoal em Nova Iorque. Leiam as obras dele. Um trabalho honroso, de quem não amarrou aos próprios pés a bola de ferro do ódio e da vingança.
De forma totalmente oposta ao terror que lhe fora imposto, ensinou a todos o que é justiça, bem como o sabor da esperança, a firmeza de propósitos e o amor a si próprio e aos semelhantes. Sua vida, (re)conquistada a duras penas, nos mostra que justiça/serenidade e vingança/ódio são pontos opostos de um contínuo, e que cabe a nós optar pela justiça (por meio da transformação pessoal ou da coletividade) ou pela estagnação da vingança obtida a qualquer preço.