por Angelina Garcia
Custava a acreditar que a amiga houvesse mudado tanto. O fato de se verem bem pouco e em encontros rápidos, nos últimos cinco anos, talvez justificasse sua incredulidade. Conheceram-se na infância e, desde então, Sílvia passara a admirá-la, principalmente pelo prazer que Natália tirava de cada acontecimento. Costumavam identificá-la como aquela que ri à toa, parece boba. Não era. É que sabia mesmo sentir a vida com um prazer tamanho que conseguia rir até dos tombos que levava, inclusive daqueles quando tentava apanhar a única goiaba na pontinha do galho mais alto. O risinho infantil deu lugar à gostosa gargalhada da adolescência, que continuou sua marca na idade adulta.
Após duas horas na festa, ameaçara dois ou três sorrisos, aqueles de canto da boca ou de lábios cerrados. Não bastasse a ausência da sua alegria, mostrava-se insatisfeita com tudo, a algazarra de crianças esbarrando na mesa; o garçom que demorava demais para trocar os pratos; a bebida na temperatura inadequada; até a canção ao vivo, de que gostava tanto, dizia estar mal interpretada. Fosse tudo verdade, em outros tempos, faria piada.
Ao decidir interpelá-la, Sílvia constatou que se enganara ao pensar que alguma coisa muito séria estaria acontecendo à amiga. Nada que fugisse ao cotidiano: a condição de profissional, mãe, esposa, filha, irmã. Papéis que dão a todos nós tanto alegrias quanto preocupações. Mas à medida que Natália avançava em seu relato, podia-se perceber que a sua insatisfação decorria da maneira como lidava com essas questões.
Culpava seu gerente por lhe dar mais tarefa que aos outros funcionários; aos filhos por não perceberem suas necessidades de mulher e ao marido porque não reconhecia o seu esforço em manter tudo em ordem para não perturbá-lo. Lamentava-se do cansaço, do sono maldormido, da irritação constante, do choro sempre iminente, da perda de interesse por qualquer coisa.
Como que levada pelas circunstâncias, fazia por fazer, sem conseguir identificar o que de fato lhe pertencia por escolha. O buraco é fundo e a parede escorregadia, queixava-se.
Quando se culpa o mundo por se sentir infeliz, são necessários dois movimentos que, à primeira vista, parecem contrários, contraditórios mesmo. Não são.
O primeiro é no sentido de se responsabilizar pela própria insatisfação, revendo atitudes que, ao longo do tempo, foram contribuindo para que se chegasse a tal ponto. Deixe que venham a dor, o lamento, a culpa, o dó e, ao mesmo tempo, a raiva de si mesmo. Não tenha medo nem vergonha em senti-los, mas não fique nesse lugar por mais tempo que o necessário; há o risco em achá-lo confortável e não querer sair. Esse é apenas um mergulho necessário para o segundo movimento: distanciar-se da situação. Perceber que você e a situação são coisas distintas. Ela lhe pertence, mas não está misturada a você.
Algumas pessoas conseguem alternar esses movimentos deixando curto espaço entre eles. Outras precisam de mais tempo em um, ou em outro, para se permitirem um terceiro: a ação transformadora. Cada um vai encontrando seu ponto de equilíbrio entre o sentir, distanciar-se e transformar, lembrando sempre que o processo exige grande esforço e muita paciência.