por Monica Aiub
Morte e vida
"Vida só vida, vida sem sombra é visão utópica projetada para além do mundo de contradições, trabalho e guerra. Nessa utopia não haveria mudanças nem fluxo, nem trabalho. No extremo oposto teríamos o trabalho que não se renova, a impiedosa tarefa de Sísifo, vida sem lógica, sem Discurso. O Discurso revela-se no transcurso. Negados ambos os extremos, resta a vida-morte, vida que se refaz, transcorre." (Schüler)
Retomando as referências ao artigo anterior (clique aqui), que tratava do idiota, do ensimesmado, surgem muitas questões, ainda referentes à idiotia. A primeira delas diz respeito à morte.
Nosso limite, nosso fim. De Heráclito – que afirmava que constantemente damos diferentes formas a nossas vidas, mas que a última forma nos é dada pelos vermes – a Heidegger – que nos apresenta como um "ser para a morte": nossa única certeza, nossa limitação e, paradoxalmente, nossa possibilidade de ser-no-mundo – a morte aparece em suas diferentes faces e leituras, como possibilidades de vida.
Se estamos vivos, caminhamos para a morte, morremos a cada instante, mas também cultivamos a vida, com substituições de nossas células, com renovações de nosso ser. O mesmo fruto, diz Heráclito, é sadio e podre, também não seríamos nós, ao mesmo tempo, sadios e podres? Nossas organizações sociais nascem e morrem a cada dia, refazem-se, desfazem-se em novas formas, em colisão de ideias. Não há pleno sem a contradição, a divergência já anunciada por Heráclito é verificada diariamente. Se repetimos o mesmo, não há fluxo, não há vida.
"Quando morremos? Na verdade, morremos todos os dias. Morte são também nossas decepções, nossos projetos falidos, nossas ideias abortadas. Morte é tudo o que nega a vida. A morte definitiva, a que encerra todos os atos, a que nos apresenta a vida concluída, dessa não podemos tratar porque ela nos excede. Restam-nos os insucessos que a anunciam, neles acenam os signos do que não nos é dado alcançar. Esperamos e conjeturamos. Como poderíamos, de outro modo, elevar-nos acima da solidez dos corpos que nos cercam, assinalando-lhes a precariedade?" (SCHÜLER, 2001: 196).
Quantas vezes morremos em vida? Quantos projetos abortados? Quantas decepções? Num primeiro momento a morte nos atinge, congela, impede. Mas assim que vivemos nosso luto, que choramos nossos sonhos mortos, nova vida surge: novos planos, novas possibilidades, às vezes melhores que as anteriores. Quantas vezes se faz necessário que abortemos um projeto falido para darmos lugar a uma proposta mais condizente com as possibilidades reais? Quantas outras vezes necessitamos negar uma ideia para que outras possam surgir? Quantas vezes aquele que nos contradiz e nos provoca ao abandono de um posicionamento fechado nos impulsiona, ao mesmo tempo, ao renascimento, através de novas posições?
O problema é que tememos a morte, nos apavoramos diante dela, ao invés de vê-la como possibilidade de vida. Queremos somente a vida, o que é, como afirma Schüler, utopia. Não há vida sem morte, nem morte sem vida. Poderíamos ficar com Epicuro que nos garante que não devemos temer a morte, porque enquanto estamos vivos ela não está presente, e quando ela está, nós é que não estamos.
"Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida." (EPICURO, 2002: 29).
Apesar de inevitável, lutamos constantemente contra a limitação que nos é imposta. Buscamos todos os meios possíveis para preservar a vida. O desenvolvimento tecnológico, o investimento em medicamentos, as pesquisas sobre formas de ampliar os limites da vida são frequentes e buscados em larga escala na sociedade atual. Há quem aposte na construção dos ciborgues, considerando a mistura de silício com material genético como um ponto de partida para a imortalidade. Há quem defenda a possibilidade de um download de nossa consciência para uma máquina, permitindo assim a manutenção da vida em outro formato, em outro hardware, como, por exemplo, Kurzweil, em A era das máquinas espirituais.
Mas nos preocupamos com outras formas de morte? Claude Levi-Strauss, em Antropologia Estrutural, descreve algumas situações em sociedades primitivas, onde os condenados à morte simbólica – ou seja, aqueles que por algum motivo foram condenados por suas sociedades a serem tratados como se não existissem, como se tivessem morrido – em pouco tempo morriam de fato.
Quanta morte há, então, na indiferença? Afirma Buber, em Eu e Tu, que o contrário do amor não é o ódio, e sim a indiferença. A indiferença não provoca, exclui; não discorda, anula; impede a vida, mata. Diz Schüler: "Há espaço comum quando a diferença não provoca indiferença." (2001: 145). No espaço comum construímos, ampliamos as margens do rio que é e não é o mesmo. O espaço comum propicia a morte do mesmo para o surgimento do novo, do eu que se constitui junto-com-o-outro, daquele que sai do idiotismo e, em seu movimento, cria a vida.
Se buscamos a vida e tememos a morte, porque nos tornamos a cada dia mais ensimesmados? Por que constituímos uma sociedade cada vez mais individualista? Por que tratamos o outro com indiferença? Por que nos permitimos tratar com indiferença? Qual a diferença que fazemos no mundo onde vivemos? Se morte e vida são complementares, se morremos a cada dia e isso nos permite renovação, qual a nossa renovação diária?
Referências Bibliográficas:
BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2008.
EPICURO. Carta sobre a felicidade – a Meneceu. São Paulo: UNESP, 2002.
HERÁCLITO. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.
KURZWEIL, Ray. Era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007.
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naif: 2008.
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.