por Monica Aiub
“Uma causa principal das doenças filosóficas – dieta unilateral: alimentamos nossos pensamentos apenas com uma espécie de exemplos” (WITTGENSTEIN, Investigações filosóficas, §593).
O contexto da expressão retirada do livro Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, é a significação da linguagem. O autor apresenta, nesta obra, a linguagem como um jogo, cujas regras aprendemos ao jogar, e indica o conceito de “uso” para a significação das palavras. Há, segundo ele, tantos jogos de linguagem quantas formas de vida.
É interessante pensar no que seria uma dieta unilateral. Compreendemos tudo o que nos chega a partir de um conjunto de exemplos advindos de nossa forma de vida, tendendo a significar tudo, inclusive os contextos que nos chegam juntamente com as expressões, a partir de tal forma. Considerando que nos posicionamos e atuamos no mundo a partir de nossa compreensão do mesmo, os limites impostos por uma dieta unilateral restringiriam nossas possibilidades de existência.
Pelo fato de ter vivido como vivi até o momento presente, de conhecer o que conheço, todos os novos dados que me chegam são compreendidos à luz deste vivido anteriormente, não me possibilitando ultrapassar os limites do que já vivi, não me permitindo, sequer, propor questões ou hipóteses que transcendam tais delimitações.
Ao nos depararmos com formas de vida distintas das nossas, consideramos aberrações, loucura, anomalias, patologias… minimamente, erros. Dificilmente nos questionamos sobre possibilidades distintas das nossas. Como seria se vivêssemos de um modo completamente diferente do que vivemos? Como seria se ao invés de termos sido educados de modo a construir uma subjetividade individualista, tivéssemos sido educados para a vida em comunidade? Nem sequer conseguimos imaginar a situação de fato. Quando, com muito esforço, conseguimos imaginar de um lado, consideramos loucura daqueles que vivem assim; de outro, imaginando a partir de nossos referenciais, levantamos problemas que indivíduos como nós gerariam em contextos dessa natureza, porque nosso modo de viver nos leva diretamente para tais dificuldades.
As utopias, tão presentes em nossa história, representam não apenas o lugar que não existe, mas o que jamais existirá. São lidas, muitas vezes, como um delírio daquele que as constrói, como um belo sonho que jamais deixará de sê-lo, porque… a natureza humana, a vida em sociedade, o sistema, a educação, a cultura etc. Sempre há uma justificativa para o porquê não podemos viver de outra maneira.
Então, considerando como única possibilidade a forma como vivemos, destruímos todas as outras possibilidades, para nós e para outros. Muitas vezes impomos a outros o viver como vivemos. Não porque queiramos impor – talvez alguns de nós nem saibam que impõem – mas porque acreditamos ser a única forma possível.
Não considero que isto ocorra devido ao grau de instrução, ou à variedade de experiências de vida, pois estes podem estar dentro de um mesmo tipo de “dieta”. Por exemplo, um pós-doutor que lê o mundo a partir de seus referenciais de estudo, e apenas deles, possui uma dieta unilateral. Uma pessoa que viajou pelo mundo visitando os pontos turísticos mais importantes, ou os principais museus, ou os restaurantes mais famosos, ou seja lá que critério único for, possui uma dieta unilateral. Ainda, uma pessoa que circula por diferentes culturas e grupos sociais, e os lê a partir de uma teoria sociológica, antropológica ou filosófica, possui uma dieta unilateral. Acredito, inclusive, que nossa educação, assim como a instrução que recebemos e as formas que aprendemos a utilizar para significar as experiências de vida colaboram para a consolidação de uma dieta unilateral.
Ser singular
Falamos, constantemente, de diversidade, de singularidade, de subjetividade, mas ser singular tem sido compreendido, dentro de uma dieta unilateral, com a liberdade de viver uma mesma forma de vida, onde tudo é justificável, desde que contribua para a manutenção desta forma. É preciso ser livre para ser diferente. Mas em que consiste ser livre? Em que consiste ser diferente?
A internet, em tese, nos daria a possibilidade de conhecer diferentes modos de vida. Contudo, o que conhecemos de fato a partir deste instrumento? Quantos de nós transcendem os limites de sua “dieta”? Quantos de nós se permitem ir além do “assistir” ao diferente como se assiste a um filme como mero entretenimento?
E agora, olhando para o que se passa em nosso país – algo que não é natural, mas é lido como tal nesta “dieta” – haveria saída para a crise que vivemos? Nesta “dieta” a que nos submetemos, ou seja, no conjunto de exemplos a partir do qual compreendemos o que se passa à nossa volta, há como resolver a questão da corrupção, da justiça? Há como criar diferentes formas de vida, nas quais a mentira, o crime, a corrupção não sejam considerados um método, um modo de viver?
Creio que precisaríamos variar a “dieta” para ampliar as possibilidades de hipóteses, para que pudéssemos considerar formas distintas destas às quais estamos submetidos. Em nossa “dieta” atual (e unilateral) nos consideramos livres, autônomos, mas impossibilitados de agir de modo a modificar nossa própria condição. Somos livres, de fato? Em que consiste nossa liberdade? O que significa autonomia? A partir de quais “dietas” abordamos estas questões? Ou melhor, abordamos tais questões?