Por Samanta Obadia
Recentemente, assisti com meus alunos, o episódio “Arkangel” de Black Mirror (1). Apreciamos a perspicácia do roteiro, ao utilizar a tecnologia como metáfora para falar da obsessão por controle que algumas pessoas têm por seus entes queridos: pais, cônjuges, filhos, amigos etc.
A diferença entre cuidado e controle é extremamente sutil. Entre o amor e a posse há uma linha tênue, que num simples deslize é ultrapassada, marcando o outro, muitas vezes, de maneira irreversível.
No episódio citado, a mãe decide colocar um chip na filha, depois de perdê-la num parque. Assim, passa a protegê-la de tudo o que ela pensa ser nocivo para a menina.
Até que ponto, em nome do ideal amoroso, podemos evitar que o outro viva suas próprias dores e frustrações? Quem é capaz de medir aonde o outro pode chegar?
Lembro de minha infância, quando fiz uma aula de judô no lugar de meu irmão, quando ele se recusou. Amei aquela experiência, mas minha mãe não permitiu que eu frequentasse o mês pago, porque “luta não era coisa para meninas”. Hoje eu entendo que ela o fez em nome do amor que tinha por mim. Mas me senti castrada naquele instante.
Aos cinco anos, ganhei minha primeira bicicleta de meus avós maternos. Empolgados, compraram uma bicicleta maior que eu, e eu precisei esperar dois anos para que meus pés alcançassem os pedais. Foi muita alegria quando isso aconteceu e, é óbvio que todo o meu tempo livre era dedicado às pedaladas. Como toda criança, ao ousar, caí e me machuquei. Apavorada, e cega de amor, minha mãe doou minha bicicleta a fim de me proteger das quedas. Quando a única coisa que eu desejava naquela queda era aprender a cair para levantar depois.
De alguma forma, eu vivia um conflito: o medo de me machucar desagradando minha mãe e a admiração pela superação física. Segui fazendo dança contemporânea, mas não era o suficiente.
Aos 16 anos, apoiada por meu avô materno (2), ganhei meu primeiro kimono e iniciei minhas aulas de tae-kwon-do com os mestres Lee e Kim. Lesões me afastaram, e inconscientemente o medo também. Mas o que é nosso ninguém tira de vez, sempre retorna. Assim, transitei na vida adulta pelo Tai Chi Chuan, Kung Fu e Krav Magá.
Descobri, com a vida, que a superação física me afasta do tédio, impulsionando minha mente para ir mais adiante. Atualmente, vivo esse desafio na Valente Crossfit, um lugar que não pensei frequentar. Todavia, algo ali me atraiu e começo a me sentir parte dessa nova família.
A dor, os traumas e o medo que o mundo nos impõem são obstáculos necessários para que possamos ganhar força, superar nossos limites e enfrentar novos desafios.
Todo amor requer cuidado, atenção, olhar e escuta. Entretanto, aquele que ama precisa aceitar que o sujeito do seu amor não é um objeto, ele tem livre-arbítrio, suas vontades, suas limitações, seus talentos e desafios. Deixá-lo trilhar seu próprio caminho é a real prova de que há um amor verdadeiro, mesmo que por vezes, seja difícil vê-lo sofrer. Afinal, para amar tem que ser Valente.
(1) "Arkangel" é o segundo episódio da quarta temporada da série de antologia Black Mirror.
(2) Armando de Vasconcellos, Campeão de peso leve pelo Vasco da Gama em 1949, e Presidente da Confederação Brasileira de Pugilismo de 1983 a 1988, por três mandatos consecutivos.