por Monica Aiub
A noção tradicional de filosofia, que considera a junção dos termos gregos (philia) e (sophia), aponta para o amor, para a busca incessante da sabedoria. Diante da figura do sábio da Antiguidade, isto é, aquele que possuía o saber de todas as coisas, o termo filosofia surge da constatação de nossa impossibilidade de possuir o saber de todas as coisas, mas de uma necessidade vital de permanecermos em busca do saber. O filósofo é o “amigo da sabedoria”, aquele que a busca incessantemente, o que é diferente de ser sábio.
Contudo, hoje encontramos em nossos dicionários as palavras sábio e filósofo como sinônimos. O que isto significa? Iniciemos pela figura do sábio.
Temos um sábio esteriotipado, de onde ele surge? Segundo o Dicionário de Filosofia (Abbagnano), a figura esteriotipada do sábio foi traçada na idade alexandrina por epicuristas, estóicos e céticos, principalmente pelos estóicos: Epiteto, Sêneca e Marco Aurélio. Nesse estereótipo, o sábio é aquele que mantém a serenidade diante das dificuldades da vida: ataraxia ou apatia e aponia (falta de energia).
O sábio estóico é alguém que vive isolado, não partilha das características comuns dos mortais. Não é possível ser mais ou menos sábio, ser parcialmente sábio. Ou é sábio, ou é tolo. O sábio é auto-suficiente, é alguém totalmente desprendido que suporta e se abstém. O neoplatonismo de Plotino acrescenta a consciência como um traço fundamental ao sábio: olhar para dentro de si mesmo e encontrar todas as coisas.
Isolado, auto-suficiente, inteiramente sábio, consciente, olha para si e tudo encontra, tudo suporta… Você desejaria ser esse sábio? Consideramos sábias as pessoas com tais características na atualidade? No mínimo as consideramos estranhas, talvez até um pouco desequilibradas, egocêntricas… sofreriam de algum transtorno?
Mas o que é sabedoria? O que é aquilo que possui o sábio?
No Dicionário Aurélio encontramos diferentes significados para sabedoria: grande conhecimento, erudição, saber, ciência; qualidade de sábio; prudência, moderação, temperança, sensatez, reflexão; conhecimento justo das coisas; ciência; conhecimento inspirado nas coisas divinas e humanas; esperteza, astúcia, manha.
Quem é o sábio? O prudente, moderado, sensato e erudito? Ou o esperto, astuto e malandro? Estaria embutida na cultura do jeitinho brasileiro uma espécie de sabedoria? Qual sabedoria buscamos: a sensatez ou o jeitinho?
Se traçássemos o percurso histórico do conceito de sabedoria na filosofia, encontraríamos um movimento pendular que vai da aproximação dos conceitos de sabedoria e sapiência – uma espécie de sabedoria ideal, defendida por Platão – ao conceito de sabedoria como uma atividade racional diretamente vinculada às questões práticas da vida humana – como defendeu Aristóteles na Ética a Nicomacos. Segundo Aristóteles, a sabedoria diz respeito a questões como as de ordem política ou doméstica, que nos exigem prudência e justiça. Ele defendia, ainda, que se o ser humano é mutável, a sabedoria também o é.
Esse movimento pendular se mantém, de um lado exaltando a sapiência ideal (estóicos, neoplatônicos), de outro aproximando a sabedoria às questões humanas (S. Tomás). Na Modernidade, Leibniz defende que “a sabedoria é o perfeito conhecimento de todos os princípios e de todas as ciências e da arte de aplicá-los”. Com Hegel esse conceito adquire um caráter mundano, que é evidenciado por Schopenhauer, que o compreende como a “arte de gastar a vida da maneira mais agradável e feliz possível”. O caráter de sapiência ideal praticamente desaparece na filosofia contemporânea, que trata a sabedoria como o conjunto das técnicas que dispomos para o bem-viver.
Seria então o sábio aquele que conhece as técnicas para o bem-viver? Seria esse o motivo de buscarmos com tanta insistência “lições”, “gotas”, “receitas” de sabedoria? Por isso consultamos hoje os oráculos milenares a fim de encontrarmos respostas para nossas questões?
Da Antiguidade tivemos notícias dos chamados Sete Sábios (Tales, Biante, Pítaco, Sólon, Cleóbulo, Mison e Quilon). Deles conhecemos algumas frases soltas, atribuídas a eles e, através das quais foram identificados como sábios. Frases como: “Conhece-te a ti mesmo” (atribuída a Tales); “A maioria é malvada”, “A carga revela o homem” (Biante); “Sabe aproveitar a oportunidade” (Pítaco); “Leva a sério as coisas importantes”.
Nada demais
“Nada demais” (Sólon); “Ótima é a medida” (Cleóbulo); “Indaga as palavras a partir das coisas, não as coisas a partir das palavras” (Mison); “Cuida de ti mesmo, não desejes o impossível” (Quilon). Alguém poderia ser considerado sábio por essas frases? O que elas significam? Quantas vezes você já pronunciou “Nada demais”, e nunca o consideraram sábio?!
Se a sabedoria está diretamente relacionada às questões da vida humana, frases, lições ou idéias só poderiam ser consideradas como sabedoria caso fossem pronunciadas num contexto que lhes garantisse esse status. Talvez por isso Heráclito, ainda na Antiguidade, fizesse a crítica à polimatia – o saber de todas as coisas – que ele nomeava como o manual do vício. Se sabemos todas as coisas sobre todas as coisas, se temos as respostas para tudo, será que não nos impedimos de pensar, de criar novos e diferentes caminhos? Ao buscarmos uma sabedoria ideal, um oráculo que nos dê respostas, estaríamos fazendo uso de nossa inteligência ou nos embotando por uma forma de aceitação dogmática? Que tipo de saber nos orienta?
Se compreendemos por sabedoria um conjunto prévio de saberes, um saber da totalidade, criamos um saber totalitário, uma forma de impedir a autonomia do pensar. Se tudo se move, inclusive o ser humano e suas questões, como pensava Heráclito, “O pensar é a maior virtude, e é sabedoria dizer a verdade e agir de acordo com a natureza compreendendo-a” (frag. 112).
Para compreender a natureza é preciso compreender seu movimento; para compreender a vida humana, é necessário compreendê-la em seu movimento. Compreendemos e nos movimentamos por termos compreendido. Movimentamos-nos e já não compreendemos mais. Por isso, o conhecimento da totalidade não nos é acessível. Ainda assim, “É possível a todos os homens conhecer-se a si mesmos e ser sábios” (fr 116).
Para sermos sábios precisamos acompanhar o movimento da vida, nos perceber em movimento, nos permitir a construção de novos modos de ser, encontrar a autonomia de nosso pensar e a construção de nosso bem-viver. O que num contexto pode significar uma palavra de sabedoria, em outro contexto pode ser “um manual do vício”.
Quem é o sábio de hoje?
Aquele que sabe viver.
O que é saber viver? É buscar, diante das questões e dificuldades que a vida nos traz, as melhores formas de vida.
Quando escolhemos uma forma de vida que nos permite bem-viver, diante de todas as dificuldades que enfrentamos, encontramos a sabedoria e podemos transmiti-la a todos os outros seres viventes? Não é isso que buscamos quando procuramos “receitas”, “lições”, “gotas” de sabedoria?
Talvez aquele que as encontrou como a melhor forma de vida tenha sido um sábio, porque encontrou a melhor forma de vida diante de sua situação, diante de seu momento. Seríamos nós sábios se reproduzíssemos essa forma em nossas vidas? Ou seríamos sábios se construíssemos as nossas formas de vida a partir de nossa situação, de nosso momento?
Quem pode nos dizer o que fazer de nossas vidas? Aquele que olha para dentro de si e vê todas as coisas? Será que o que eu vejo quando olho para dentro de mim é o mesmo que você vê ao olhar para si mesmo? Se já não somos os mesmos simplesmente por termos olhado…
Não há técnicas previamente determinadas que nos garantam o bem-viver. Não há receitas, não há garantias. Nosso bem-viver depende das construções que fazemos. Para construirmos adequadamente precisamos conhecer o terreno, o entorno, o material. De que material você é feito? Qual a topografia do chão que você pisa? O que o circunda? Quais as formas da sua existência?
Talvez a resposta a essas questões lhe traga mais sabedoria do que toda a História da Sabedoria do Ocidente. Ou talvez a História da Sabedoria do Ocidente lhe mostre que a sabedoria se movimenta com o movimento da vida.