por Luís César Ebraico
Durante cerca de um ano, a relação entre Fernando e Júlia havia sido um mar de rosas. A partir daí, o comportamento de Júlia começou a se alterar.
FERNANDO: — Pelo amor de Deus, Júlia! Nós éramos tão felizes! De um tempo para cá você vem infernizando nossa vida! Vive me perseguindo com perguntas absurdas, passou a duvidar de minhas respostas, a me impedir de trabalhar direito por me chamar dezenas de vezes por dia no telefone de meu escritório, a me seguir para saber aonde eu estou indo, a me agredir verbalmente e nem sei o que mais! Que diabos está acontecendo com você para você mudar tanto assim?
JÚLIA: — É porque antes eu não te amava e AGORA EU TE AMO!
FERNANDO (depois de alguns segundos de perplexidade): — Daria, então, para você me fazer um favor?
JÚLIA: — Qual?
FERNANDO: — Daria para você virar o canhão do seu amor na direção do meu maior inimigo?
Amor não é algo que se produza por um ato de vontade. Espontaneamente, ocorre ou não. Se é assim, quais as conseqüências de uma cultura, de inspiração essencialmente cristã, que faz uma maciça apologia do amor, bombardeando cotidianamente o indivíduo com o refrão de que ele DEVE AMAR?
A primeira dessas conseqüências é a igualmente maciça produção de “factóides de amor”, como o ilustrado no diálogo acima, a ponto de o objeto de tal amor “fake” (falso) preferir que tão nobre sentimento seja dirigido ao vizinho…
O que ocorre, na verdade, é que, preso na armadilha de uma cultura que entende amar como algo que deve ser obrigatoriamente dispensado de forma universal, o indivíduo, temendo ser pego em flagrante não fazendo uma coisa que, na verdade, não pode mesmo fazer, traveste desejo de amor, mas – alguém se surpreende com isso? – vemo-lo tratar seus seres “amado” como se fossem bifes. E monta-se uma verdadeira “churrascaria existencial” com nome de ONG filantrópica…
O ótimo é inimigo do bom. Seria ótimo se todos nos amássemos uns aos outros, não? Pois é, mas, se a primeira conseqüência do imperativo de amar é uma endêmica perversão do uso da palavra amor, a segunda das conseqüências desse imperativo é a de ele funcionar como uma espécie de “boi para piranha” – aquele que os boiadeiros jogam em um lugar do rio para que, enquanto as piranhas o devoram, o resto da manada passe a salvo ao largo dali. Com efeito, enquanto os indivíduos estão ocupados com tentar entregar o que não podem – ou seja, amarmo-nos todos uns aos outros – não podem ocupar-se de entregar o que poderiam – ou seja, respeitarmo-nos todos uns aos outros.
Sobre esse segundo ponto, foi publicado, no exemplar de 8 de janeiro de 2003 da revista VEJA, uma interessante crônica de Stephen Kanitz, entitulada “Respeitai-vos uns aos Outros”. Encerro este “DIÁLOGO” transcrevendo alguns trechos retirados dali:
“ ‘Amai-vos uns aos outros’ (João 13, 34) é um comando religioso claro e inequívoco, mais conhecido do que os dez mandamentos. É um mandamento exigente, difícil de cumprir. Se a paz mundial depender da incorporação desse valor, o futuro não será muito otimista. … Respeitar as nossas diferenças como seres humanos, nossas culturas, nossas religiões e nossos tiques nervosos é bem diferente de amar a cultura, a religião e os tiques nervosos do próximo. … Nunca ouvi um líder negro exigir ou pedir o amor dos brancos. O que ouvimos das lideranças é um pedido de mais respeito.” E, após haver salientado que “podemos perfeitamente respeitar uma pessoa diferente e estranha” sem que, para isso, precisemos amá-la, o autor termina: “Vamos começar o ano de 2003 com uma meta mais light, menos exigente. Vamos começar respeitando-nos uns aos outros”. Assino embaixo, mas parece que mal começamos…
De passagem, o diálogo acima é real. Aconteceu comigo.