Dizer o que pensa é ser autêntico?

É possível dizer o que se pensa sem agredir ou magoar o outro

Convivi com um colega de trabalho que era conhecido por dizer o que pensava. Umas poucas vezes cheguei a ouvi-lo dizer que “com ele era jogo claro, que ele era verdadeiro, autêntico, que não dizia nada pelas costas dos outros, que com ele era tudo na lata, doa a quem doer”. Quando irritado, ele chegava, algumas vezes a fazer uso de sarcasmo, tinha uma fina ironia, sua inteligência verbal o conduzia a terrenos pantanosos nos relacionamentos interpessoais. Apenas sei do desempenho dele no trabalho, nada acerca de vida pessoal, e não ousaria fazer  conjecturas. O rapaz, já começando a meia-idade, teve uma evolução profissional pouco significativa, se comparada aos seus pares etários com nível equivalente de formação técnica.

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Arrisco uma hipótese para as dificuldades profissionais que ele enfrentou. Era patente que seu relacionamento com colegas e chefes deixava a desejar. Por conta de inabilidades sociais, ele produziu um rastro de antipatias, criando oponentes nos setores onde trabalhou. Era reconhecido como tecnicamente habilidoso, mas os atributos que o qualificavam como pessoa iam de chato a grosseiro, de metido a besta a dono da verdade.

Livre expressão e transparência sim, mas seja socialmente habilidoso e flexível  

Meu colega parecia funcionar sob influência do entendimento de que ele teria o direito e o dever de sempre manifestar suas opiniões discordantes, doa a quem doer. Ele parecia valorizar a transparência e o direito à livre expressão, o que em si pode não ser um problema se o indivíduo for socialmente habilidosos, flexível nas ideias e souber identificar formas gentis, empáticas, justas e compassivas de expor suas opiniões. E também seria necessário ele identificar o momento mais adequado e para quem a mensagem seria melhor endereçada.

Não se faz uma oposição a qualquer pessoa de forma aberta, sem considerar a totalidade dos presentes, a sensibilidade cada um e os níveis hierárquicos. E nem costumam funcionar expressões de sarcasmo (que denotam desprezo pelo ouvinte, funcionam como provocações) ou ironia (que usa de um humor por vezes corrosivo para apresentar uma opinião). Estou falando de comportamentos verbais que são da família do abuso verbal, do desrespeito ao ouvinte.

É possível dizer o que se pensa sem agredir ou magoar o outro   

Ter voz neste mundo é um direito inalienável, a meu ver. Mas creio que pode-se pagar um preço alto quando opiniões são expressas descuidada e impulsivamente, sem consideração pelo contexto social que cerca o falante e o ouvinte. Uma opinião técnica correta pode não ser levada em conta se comunicada de forma rude. De certo modo, valeria a pena botar um freio no impulso de cuspir desastradamente qualquer fala de oposição a alguém do time de trabalho. Com calma, o rapaz poderia considerar com quem e quando valeria bater um papo, discutindo a ideia que teve. Igualmente importante é atentar para a forma de expressar o que pensa, delicadamente, sem desqualificar o interlocutor. Bons argumentos, dados precisos e palavras respeitosas talvez mudassem a opinião negativa da maioria das pessoas acerca dele.

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O que um conto antigo pode lhe ensinar…

Um conto antigo dizia mais ou menos o seguinte:  um rei, autocrático e de temperamento irritável convocou adivinhos para lhe contarem sobre seu futuro. Os dois primeiros enxergaram um breve futuro ao rei, disseram que ele não sobreviveria ao próximo ano. O rei escorraçou os adivinhos, tiveram que se exilar antes que fossem sorrateiramente mortos pelos soldados a serviço do rei. O terceiro adivinho observou o que aconteceu aos seus antecessores e, fiel aos fatos e cauteloso com o temperamento autocrático e belicoso do rei, disse a ele que sua vida era uma sucessão de feitos importantes, que ele sempre seria uma influência no reinado e lhe recomendou que buscasse saborear a vida em sua beleza e plenitude. Suas palavras funcionaram, ele foi recompensado sem precisar mentir: o autocrata morreu logo, deixou marcos importantes na história do reino, serviu de influência para os sucessores, que buscaram fugir de seu estilo de governo autoritário e cheio de arbitrariedades. Ele disse a verdade, e considerou o contexto no qual suas palavras seriam ouvidas.

É psicoterapeuta na abordagem analítico-comportamental na cidade de São Paulo. Graduada em Psicologia pela PUC-SP em 1981, é Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela IP-USP. Atua como terapeuta e supervisora clínica, é também professora-convidada em cursos de Especialização e Aprimoramento. Publicou dezenas de artigos científicos, e de divulgação científica, além de ser coautora de livros infanto-juvenis.

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