por Monica Aiub
No artigo anterior, – clique aqui e leia – abordei a questão do adoecer como uma forma de lidar com os problemas. Muitos leitores enviaram questões e contribuições, por isso, permanecerei no tema.
Sempre que adoecemos o fazemos como forma de solucionar nossos problemas?
A princípio eu diria que não. Há vírus, bactérias, conformações genéticas que podem provocar distúrbios em nós, independentemente das questões que enfrentamos no cotidiano.
Contudo, nada nos impede de pensar na possibilidade de tais vírus ou bactérias nos atingirem mais ou menos de acordo com o estado geral de nosso organismo, e deste variar de acordo com os estados mentais que o constituem. Também nada nos impede de pensar que determinadas conformações genéticas se destacam ou não de acordo com o ambiente no qual o organismo se insere. Assim, não é possível responder tão rapidamente a questão.
Temos o hábito de procurar e apontar causas para todas as coisas. De Aristóteles a Claude Bernard, o princípio causal é um pressuposto da ciência. Estabelecemos relações de causalidade para explicar o que se passa conosco e, com isso, buscamos uma causa para tudo o que nos acontece. Também buscamos causas para o que sentimos, vivemos ou somos.
David Hume, em Ensaio sobre o entendimento humano, questiona o princípio de causalidade. Relações causais são, para ele, associações de eventos através do hábito, ou seja, uma vez que estamos habituados a encontrar dois eventos ocorrendo juntos, atribuímos uma relação de causalidade entre eles. Trata-se de nexo causal ou apenas de relação? Segundo ele, o que ocorre é uma regularidade acidental. Assim sendo, a necessidade não está nos objetos, está na mente e é projetada neles. Portanto, a noção de causalidade é produzida por associações de idéias, por uma crença fundamentada no hábito.
Composição de causas
Stuart Mill, no texto Sistema de Lógica, aponta a possibilidade de uma composição de causas, em que o efeito é um conjunto de diversas causas, ou a soma de seus efeitos separados. Com isso, aponta as diferenças entre causas e condições, e propõe a substituição do modelo mecânico de explicação causal – no qual se busca apontar uma causa provocando um efeito, como ocorre, por exemplo, o movimento das bolas num jogo de bilhar – por um modelo químico – no qual uma composição de causas pode provocar uma composição de efeitos.
Mario Bunge, em seu livro El problema mente-cerebro, descreve os organismos vivos como constituídos de composição, entorno e estrutura. A composição é o conjunto dos elementos que formam o organismo; o entorno o que o rodeia, as circunstâncias e ambientes nos quais se encontra inserido; a estrutura é a relação entre composição e entorno.
Segundo Bunge, a sobrevivência dos organismos vivos é proporcional a sua plasticidade, ou seja, sua capacidade de modificação a partir das relações estabelecidas com o ambiente. Nessas relações, o organismo humano, como forma de sobrevivência no processo evolutivo, desenvolveu a mente. Uma vez que a mente emergiu, passou a ser parte constituinte da composição do organismo e, conseqüentemente, da estrutura.
A partir da tese de Bunge não é possível distinguir o que tem origem física e o que é derivado do mental no funcionamento do organismo, uma vez que os movimentos da vida e da evolução exigem uma movimentação ampla do organismo. Ele distingue apenas os diferentes tipos de desordens: com origem na composição ou com origem na estrutura.
Congênitas ou não
Poderíamos estabelecer uma analogia com a questão da doença. Algumas doenças, as congênitas, possuem origem na composição de nosso organismo. Outras são geradas a partir das relações do organismo humano com o meio, com seu entorno. Num primeiro momento poderíamos apontar como caminho óbvio tratar as doenças cuja origem encontra-se na composição com intervenções medicamentosas ou cirúrgicas, e as doenças de origem estrutural com modificações nos hábitos ou nas características do entorno. Mas isso seria extremamente reducionista.
Como saber se uma desordem é, de fato, congênita? Como explicar que, apesar de possuírem as mesmas características, algumas pessoas desenvolvem determinadas doenças e outras não? Nossos hábitos, as formas de vida instituídas pela sociedade em que vivemos, as estruturas sociais nas quais estamos inseridos, as relações que estabelecemos com os outros que convivem conosco, e as formas como lidamos com tudo isso podem provocar doenças em nós?
O que nos foi provocado, a partir dessas relações, pode ser caracterizado como uma forma de lidar com os problemas que se colocam, mas também pode ser compreendido como um indício de necessidade de transformação do entorno ou da maneira como nos relacionamos com ele.
Complexo de condições
Com base na crítica de Stuart Mill, dificilmente é possível estabelecer uma única causa para uma doença, sendo ela produzida por um complexo de condições e causas. Desta forma, somente uma leitura mais ampla, que capte os contextos, poderá identificar as condições, as causas e as funções de uma doença.
Em alguns casos, a doença permanece?
Uma questão que se deriva desta diz respeito ao conceito de doença, o que é doença?
Leônidas Hegenberg, no livro Doença: um estudo filosófico, busca a definição de doença. Num primeiro momento encontra “ausência de saúde”. E o que é saúde? – pergunta ele, “ausência de doença”!?
Ao avaliar a definição da OMS (Organização Mundial de Saúde) – completo bem-estar biopsicossocial –, ele sugere a possibilidade de, talvez, diante das condições de vida contemporâneas, encontrarmos esse completo bem-estar em alguma forma de estado comatoso. Como é possível, diante da vida nas sociedades contemporâneas, encontrar tal bem-estar completo?
Em sua pesquisa, Hegenberg aponta para a forma como são definidos os critérios de diagnóstico de uma doença. Trabalhamos com a norma, com o padrão. Sabendo que somos seres plásticos e singulares e, portanto, diferentes uns dos outros, é fácil compreender porque um mesmo índice pode ser considerado saudável ou doentio, dependendo das características do organismo e dos contextos nos quais se insere. Por isso, mesmo a avaliação de uma “doença” precisa ser cuidadosa, deve considerar as condições e características próprias da pessoa. O que em alguns casos caracteriza-se como uma doença, em outros é apenas de um modo de ser.
Doença e modo de ser
Nos casos em que a “doença” é um modo de ser ou um modo de lidar com as questões da vida, ela “permanecer” pode representar uma maneira de afirmar ou preservar uma forma de vida. Nem sempre é o caso de cura, pois o conceito de cura exige que aceitemos um padrão de normalidade ou de equilíbrio que deve ser mantido ou restaurado. É preciso, contudo, antes de considerar que a “doença” deva “permanecer”, observar o impacto desse modo de ser na totalidade do organismo, ou seja, como a pessoa se relaciona com a “doença”, o quanto ela interfere ou não na vida da pessoa.
No trabalho em filosofia clínica (clique aqui e leia), entender o processo é suficiente? A filosofia clínica possui recursos para trabalhar essas questões?
Há pessoas para as quais é suficiente contar a história ao filósofo clínico. Ao fazer isso, organizam as idéias ou são provocadas a um *submodo informal (Esteticidade, Deslocamento Longo, Retroação, Roteirizar, etc.) que se faz suficiente para que possam lidar com suas questões.
Outras pessoas necessitam mais do que isso: usam o processo divisório como submodo informal e, a partir do momento em que seu histórico é contado em partes (tantas quantas se fizerem necessárias), a questão é trabalhada.
Em outros casos, faz-se necessário especificar questões. E nos procedimentos de enraizamentos, a pessoa é levada a um processo epistemológico – ou seja, um processo de pesquisa sobre a origem, a construção e o significado de seus conceitos -, ou a singularizar os termos, entre outras formas.
Assim, descrevi alguns passos da clínica filosófica: historicidade, divisão e enraizamentos. Eles são apenas o começo, o momento de pesquisa, de coleta de dados para o planejamento clínico que orientará o uso de submodos.
Processo clínico
Antes mesmo do uso específico, planejado, de submodos, ocorrem movimentos existenciais na clínica, nos quais, ao ser provocado a contar sua história, o partilhante (paciente) pode encontrar modos para lidar com o que lhe incomoda.
Nesse processo clínico, há partilhantes para os quais é suficiente entender seus processos. Há aqueles que além de entender precisam ressignificar; os que não necessitam entender; os que além de entender precisam descobrir como lidar com a questão; os que ainda que descubram como lidar, necessitem aprender os caminhos para esse lidar; os que ainda que aprendam os caminhos, necessitem exercitar esses caminhos… Há muitas possibilidades, que variam de acordo com os modos e submodos de cada pessoa.
O que é necessário e/ou suficiente, o que se faz preciso a cada partilhante, é descoberto na clínica. É um modo próprio daquele partilhante, naquele contexto, diante daquelas interseções, daquele assunto e todas as possíveis variáveis, variedades e variações.
Assim, dizer que a filosofia clínica propicia apenas o entendimento da questão é muito restrito. Dizer que por isso o trabalho em filosofia clínica é insuficiente para questões dessa natureza, também é restrito.
Obviamente, não podemos descartar a possibilidade do trabalho em filosofia clínica ser insuficiente para algumas pessoas, para algumas questões. Isso acontece. E quando verificado, o trabalho interdisciplinar ou o encaminhamento a profissionais de outras áreas não é apenas desejável, é uma necessidade.
*Submodo: Em filosofia clínica, as formas, os modos que utilizamos para lidar com nossas situações são denominados submodos
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Para entender Filosofia Clínica. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
BUNGE, M. El problema mente-cerebro. Madrid: Tecnos, 2002.
HEGENBERG, L. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
HUME, D. Ensaio sobre o entendimento humano. (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974.
STUART MILL, J. Sistema de Lógica. (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974.