E eu já estou cansado de não gostar de mim…

“A exigência do amor é sempre uma dúvida sobre o amor; e toda dúvida começa como uma dúvida sobre o amor”.

Adam Phillips

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“Penso que nada seja tão importante quanto aquilo que jamais aconteceu”.

John Burnside

O amor nasce e revela a frustração com aquilo que somos. Mas, na convivência de todo casal, sempre está presente o fantasma de outras escolhas possíveis, de outros “eus” ou “nós”, que poderiam ter sido. Já vimos como a obra da Legião Urbana inspirou inveja e modificou o trabalho de Cazuza, mas por que não houve uma parceria entre o compositor carioca e Renato Russo?

Nesse texto vamos falar um pouco de uma parceria que não aconteceu, mas que ainda assim, ajuda a pensar como o amor aparece nas canções da Legião Urbana. A doença, a morte e a busca por um mundo mais justo também foram traduzidas em canção por Cazuza.

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Cazuza descreve a descoberta de que era portador do vírus da AIDS, como parte de uma crise maior de insatisfação em relação a como desenvolvia seu trabalho. Mas o cantor carioca, que durante seu período de internação em 1987, leu o trabalho de Susan Sontag sobre a doença como metáfora, não queria indulgência, medo ou compaixão, mas buscar tratamento e lutar para viver mais e melhor. Mas o enfrentamento público da doença veio junto com a redescrição de seu trabalho, que ganhou um sentido mais político e social.

Do “eu” para o “nós”

Na letra de “Um trem para as estrelas”, canção feita em parceria com Gilberto Gil para o filme homônimo dirigido por Cacá Diegues, Cazuza já mostrava um redirecionamento do seu trabalho do eu para a construção de um “nós”, da “dor-de-cotovelo” para representação do país: “Eu achava que não podia falar sobre política, por não ser uma pessoa política. Eu tinha muito preconceito em falar no plural, achava que só falava bem do meu mundinho. Isso começou a mudar quando fiz a letra de um “Trem Para As Estrelas “, com música do Gil, a partir do roteiro de Cacá Diegues. Depois conversando com mil pessoas, inclusive Gil, pensei por que não mostrar a minha visão, por mais ingênua que ela seja? Não sei quanto é a dívida externa, qual é o rombo das estatais… Não estou por dentro destas coisas, tenho uma visão romântica, mas a maioria da população deve ter uma visão ingênua, então por que não me posicionar”.

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O filme Um trem para as estrelas de Cacá Diegues, lançado em 1987, dialoga com o mito de Orfeu, mas nele o personagem principal é o saxofonista Vinícius (Guilherme Fontes) que deve buscar sua amada Eunice/Nicinha (Ana Beatriz Witgen) num mergulho na violência, miséria e desigualdade do Rio de Janeiro. Cazuza participou do filme como ator representando a si mesmo, mas de certa, como cantor, também representa Orfeu.[1]

O poder da canção é simbolizado por Orfeu, que na mitologia grega é o maior poeta e músico de todos os tempos, capaz de fazer todas as coisas se curvarem ao seu canto, que paralisava os pássaros no ar, amansava as feras, fazia os peixes saltarem e as árvores se moverem para acompanhar sua música. Mas toda essa potência e beleza, não eram para ele suficientes se não tivesse ao seu lado Eurídice, sua amada. Quando Eurídice é assassinada, o músico literalmente desce ao inferno e convence Hades a deixar levar de volta sua amada: ela o seguiria em sua saída, com a condição de que ele não olhasse para trás até chegar de novo à superfície. Mas a ansiedade venceu Orfeu, que antes de ultrapassar totalmente os limites do Hades olhou para trás buscando seu abraço, vendo a amada desaparecer, se desfazendo como fumaça. A tristeza de Orfeu e sua recusa a esquecer Eurídice revoltou as mulheres, que estraçalharam seu corpo, jogando sua cabeça e lira no Rio Hebro. A cabeça sem corpo continuou cantando sua triste canção, enquanto a alma reencontrava sua amada no Hades.

Mas Cazuza não aceitava a ideia de que a morte fosse o caminho de redenção ou que a dor e a desigualdade social pudessem ser folclorizadas. Na letra de “Um trem para as estrelas” afirma: “Eu vou dar o meu desprezo/Pra você que me ensinou/Que a tristeza é uma maneira/Da gente se salvar depois”.

Mergulho no inferno

No final de 1987, Cazuza viveu seu mergulho no Hades, quando a doença quase o matou. Mas este mergulho no inferno só o fez valorizar ainda mais a vida e necessidade de lutar por construir um mundo mais justo, transformação que fez com que ao voltar ao Brasil em 1988, já anunciasse a gravação de um novo álbum que traduziria as mudanças que vivia.

O álbum “Ideologia” é uma espécie de canto de quem voltou da morte, como um Orfeu que não quer ser dilacerado. A letra de Boas Novas anuncia: “senhoras e senhores/trago boas novas/ eu via a cara da morte/ e ela estava viva/ eu vi a cara da morte/ e ela estava viva – viva!”.

Orelha de Eurídice

Em Janeiro de 1988, falando do novo trabalho que estava gravando, Cazuza anunciou uma nova canção chamada “Orelha de Eurídice” que teria letra sua e música de Renato Russo. A parceria, que estava combinada, não aconteceu e mais tarde Cazuza explicaria: “Eu adoro essa Letra [A Orelha de Eurídice]! Essa coisa meio transcendental da procura do amor, que é a história da Eurídice. É uma chanchada de terror. Bem, aí teve uma história com o Renato Russo. Toda vez falávamos: ‘Pô, vamos trabalhar juntos!’. Aí mandei a letra para ele botar música. Liguei para Renato um mês depois, e ele: ‘Não fiz a música ainda. Estou com a maior dificuldade, primeiro porque eu não estou acostumado a trabalhar botando música em cima de letra…’ e ele não achou a música pop: ‘Eu sou POP Cazuza e além disso, não consigo me conformar com uma música cujo tema seja ORELHA…’ Quer dizer, coisas do Renato (…) Mas eu fiquei pensando: ‘Meu Deus! Que será isso?…Ah, não! Orelha! Orelha! Rima com pentelho, rima com espelho… Orelha!!!’ Aí comecei a gritar ‘ORELHA!!’ Acho interessante uma música chamar ‘Orelha’. Eu tenho mania de Orelha…”.

Orelha de Eurídice acabou sendo musicada pelo próprio Cazuza

A letra foi feita em um dia, a partir de um sonho que ele teve durante o período em que estava internado nos EUA e novamente dialoga com o mito de Orfeu. O compositor carioca também se vale de uma imagem chocante para dramatizar o rapto de Eurídice: numa época marcada por sequestros, muitas vezes a prova de que a pessoa amada continuava viva, era remetida como uma orelha decepada. Na letra, Eurídice parece enviar do inferno como presente a própria orelha envolta em um pano vermelho. A mensagem dessa estranha oferenda estaria no aprendizado de que “é a alma que castiga o corpo”. Em verdade, numa versão inicial da letra a orelha seria um pedido para que o amado “vá ao inferno, me resgate”. O reencontro com Eurídice não seria suficiente para resgatar o amor: “não é só a cicatriz que identifica o ser amado/temos que ter ideias juntos!/temos que achar uma maneira!” A letra oferecida para Renato Russo seria o convite para construção de uma parceria, para “ter ideias juntos”.

Competição

Nesse diálogo criativo era inegável uma dimensão competitiva. Cazuza tomava a competição e a inveja como sendo características vitais e naturais da humanidade.

Numa entrevista de 1988 descreve a inveja/competição como sentimentos originários: “O primeiro sentimento do ser humano é a competição. Ele nasce, pega o peito da mãe, e já está competindo com o pai. Depois vem a inveja, que é mais ou menos a mesma coisa que a competição. Então, eu acho que Cristo e Marx foram muito ingênuos. Eles tentaram extirpar isso do homem, e é impossível. O ser humano é competitivo. O leão, o tigre é competitivo, os animais são competitivos. Então, é como amputar um dedo, sem a competição as pessoas ficam sem um dedo”. (ENTREVISTA BANDEIRANTES 1988). Abolir a competição seria como amputar algo que nos move, mas isso não é necessário para superar a luta de todos contra todos? Se devemos amputar algo em nome de uma convivência melhor, por que não, ao invés de um dedo, uma orelha?

Em seus versos finais, a letra de Orelha de Eurídice, assim como outras canções do álbum Ideologia, parece se referir a uma espécie de drama geracional: se a geração anterior tinha coragem de ouvir as respostas sopradas pelo vento, e dar uma dimensão política e social para sua revolta, neste momento haveria uma “chuva sem vento”, que nos convida a “fugir pra dentro”. Mas fugir parece não ser uma solução, precisamos de ideias que nos deem sentido, de coragem para ir além da autoindulgência, de amar e fazer novas canções. O convite de Cazuza tinha a urgência de quem podia dizer “eu já estou cansado de não gostar de mim”.

Cazuza não queria mais repetir comportamentos autodestrutivos, mas buscar a felicidade de quem se engaja no mundo em um sentido ético e político; de quem enfrenta o momento trágico, convivendo com as pessoas que gosta e alimentando a coragem para ir além da frustração e mudar: a si mesmo e ao mundo.

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 [1] “Tudo morre que nasce e que viveu/ só não morre no mundo a voz de Orfeu”, com estes versos se encerra a peça Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes. Nela a história de Orfeu e Eurídice foi encenada por atores negros como uma tragédia carioca, tendo como trilha sonora sambas, com letras de Vinicius e música de Tom Jobim. A peça, em 1959, deu origem ao filme Orfeu negro ou Orfeu do Carnaval dirigido pelo francês Marcel Camus. O filme também chamava atenção para qualidade da canção popular do Brasil, trazendo uma imagem do país negro, pobre e feliz (transformando a tristeza em canção, como Orfeu). O filme ganhou vários prêmios internacionais, mas teve uma recepção ambígua no Brasil, que não se reconheceu na grande tela. Pouco depois a Bossa nova explodiria como produto de alta cultura para exportação, cantando as praias, os barquinhos e a indulgência cordial com seus lugares comuns. O próprio Caca Diegues, que dirigiu Um trem para as estrelas, em 1999 faria uma releitura da peça de Vinícius de Moraes (adaptada por João Emanuel Carneiro, Cacá Diegues, Paulo Lins, Hamilton Vaz Pereira e Hermano Vianna., no filme Orfeu, que teve trilha sonora de Caetano Veloso. A relação entre Orfeu e a importância da canção popular no Brasil não deveria ser pensada sem a consideração da dimensão racial e do discurso da negritude que inspira o modo como o Brasil foi e é visto: um país desigual, de maioria negra, que esbanja uma “alegria” não justificada (ou alienada).