Numa canção, os compositores não apenas expressam aquilo que sentem, mas dão uma espécie de roteiro afetivo para quem escuta: ao cantar junto, ao repetir a audição, podemos nos apropriar das palavras e melodias, para pensar nossa própria experiência, formas de relacionamentos e modos de vivenciar o amor.
A canção Ainda é Cedo da Legião Urbana narra uma relação afetiva que poderíamos chamar de simbiótica. Esta classificação foi feita pelo filósofo, sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980) que chama de relacionamento simbiótico aquele em que “a pessoa se relaciona com as outras, mas perde ou nunca alcança sua independência; ela evita o perigo da solidão tornando-se parte de outra pessoa, quer sendo “absorvida” por esta, quer “absorvendo-a”(p.98). São relações em que o jogo de poder cria dependência e anula a possibilidade de liberdade dos indivíduos.
Submissão e dominação
O jogo de poder na relação simbiótica produz formas de submissão e/ou dominação: “era quase escravidão/mas ela me tratava como um rei”. Em sua desigualdade, as pessoas dentro dessa forma de relação criam uma forma de dependência, que é racionalizada muitas vezes como sendo amor. Mas por um lado, haveria uma orientação masoquista, que por considerar dever ou sacrifício, se entrega ao outro, procurando a segurança de não ter que assumir o seu “eu”, de não ter que viver as exigências e inquietações da liberdade; por outro lado, haveria uma postura sádica, que busca absorver o outro, dominar a outra pessoa, manipulando-a como uma coisa, um objeto, mas justificando a vingança e a soberania como superproteção e cuidado.
Medo de ficar só
O medo de ficar sozinho leva a aceitação e acomodação numa relação desigual (a letra diz “ela fazia muitos planos, eu só queria estar alí/sempre ao lado dela, eu não tinha aonde ir” e “depois ela também estava perdida/ e por isso se agarrava a mim também/ eu me agarrava a ela, /porque eu não tinha mais ninguém”).
Fonte de felicidade está no outro
Nas duas posições o pressuposto é que a fonte da felicidade está no outro, sendo assim, não se pode aceitar de forma alguma a ruptura, já que se o outro, se a outra pessoa se torna livre e independente, deixa de ser sua. Ao não aceitar a separação (“me esqueci de ajudar/ a ela como ela me ajudou/e não quis me separar”), reafirmada de forma repetida e redundante, como sendo precipitada, não revela o amor, mas a necessidade e dependência de uma relação em que ambos se escondem da liberdade.
O amor é um luxo raro em nossa sociedade
Nesta insistência de que “ainda e cedo”, há também o reconhecimento tardio de uma forma de desigualdade na vivência da relação (“sei que ela terminou/o que eu não comecei”). A discussão encenada na segunda parte da canção, faz com que quem canta enuncie e dê voz para as falas, que são revividas neste momento como algo presente. Como aquela conversa que não sai da memória, para qual inventamos respostas imaginárias e soluções que apaziguariam ou daria outro sentido ao conflito.
Ainda é cedo: orientação sexual de Renato Russo oculta
A escritora Állex Leila desvela em Ainda é Cedo a descrição de uma relação que serviria como uma fuga ou ocultamento da orientação sexual de Renato Russo: “naquele tempo, era cedo demais para ele assumir o desejo e a identidade “escondida” por aquela relação heterossexual”.[2] Haveria então na letra uma espécie de tensão revivida entre o “eu” que se ocultava e era acusado de ter medo, e o que agora narra e pode reconhecer seu desejo. Állex Leila destaca a força que essa canção ganhava nas apresentações ao vivo da Legião Urbana, quando Renato Russo se entregava, multiplicando gestos e palavras, misturando a letra com a de outras canções[3], numa performance que funcionava como em um ritual de catarse.
Numa entrevista de 1987, Renato Russo chegou a dizer que a menina para quem ele escreveu Andrea Doria era a mesma para a qual havia feito Ainda é Cedo, mas que “não gostaria de revê-la na minha frente”, mas que gostaria de conhecer o casal que inspirou Eduardo e Mônica (2016.p.222). Essa declaração não deve ser tomada como literal, o que estaria em questão não são as personagens das canções, mas as formas de relacionamento idealizados que não conseguem ser efetivamente de amor (em Ainda é Cedo e Andrea Doria), já que nesse tipo de relação haveria reconhecimento das diferenças, das individualidades e um equilíbrio produtivo (como descrito em Eduardo e Mônica).
O medo à liberdade, segundo Erich Fromm, nos conduziria ao fascismo, na busca de uma autoridade externa para quem nos submeter. É também uma recusa a se afastar da segurança de quem obedece, de ser uma pessoa adulta e não alguém sem responsabilidade.
Ser livre é ao mesmo tempo uma exigência e algo difícil, diante das desigualdades sociais e da alienação de uma sociedade voltada para o consumo, o amor é um luxo raro, mas é nele e com ele que aprendemos o respeito, que pode fazer da ternura que dedicamos para aqueles a quem amamos, força moral para luta por justiça na sociedade em que vivemos.
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[1] Provavelmente este nome vai te remeter ao personagem Venom do Homem-Aranha, alienígena que precisa de um hospedeiro para sobreviver, mas que gera uma relação de dependência e divisão da consciência.
[2] GOMES, Alessandra Leila Borges. Infinitamente Pessoal: Modulações do amor em Caio Fernando Abreu e Renato Russo. (Doutorado em Estudos Literários). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008. P.177. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7CQGCA/1/tese_infinitamente_pessoal_completa_pdf_1_.pdf Consultado em 15/11/2019. p. 177.
[3] As canções enxertadas são listadas por Állex Leila: (Gimme Shelter”, “(I Can’t Get No) Satisfaction”, “Jumpin’Jack Flash” (Rolling Stones), “My girl” (The Temptations), “Pretty Vacant” (Sex Pistols), “Like a Prayer” (Madonna) e “Bigmouth strikes again” (The Smiths)). A autora também lembra de como nas performances ao vivo que deram origem ao póstumo As quatro estações ao vivo (2004), Renato Russo “declara que todas as músicas ali enxertadas eram parte do gosto musical “dela”, da menina, e passa a falar diretamente com esse “ela”, dedicando-lhe a execução de “Ainda é cedo” e pedindo desculpas, onde quer que “ela estivesse”, naquele momento” (idem, p. 177).