por Monica Aiub
Quantas vezes sonhamos em viver de modo completamente diferente, com outros valores, outros padrões, outras experiências?
Ao mesmo tempo em que temos consciência que somente conseguiremos realizar sonhos de tal natureza se abrirmos mão de um jeito de pensar, sentir e viver que é padrão – o jeito que nosso entorno, que nossa sociedade exige –, também sabemos que não conseguiremos sobreviver se não pensarmos, sentirmos e agirmos com esse padrão.
Os contextos, as circunstâncias que rodeiam a vida cotidiana, minha e das pessoas que frequentam meu consultório, são elementos que não apenas geram perplexidade no sentido da percepção da beleza do existir, mas também do horror, da tristeza, das terríveis facetas da existência humana. Do que somos capazes, e como somos incapazes tantas vezes; ou quanto somos capazes e não nos damos conta disso; ou o quanto afetamos uns a vida dos outros, e não nos conscientizamos disso…
O espanto diante da existência se faz presente na atividade filosófica, e um dos aspectos fundamentais desse trabalho é provocar a pessoa a observar seus contextos e a si mesma, talvez espantar-se também, ou simplesmente compreender os aspectos presentes em seu existir, em seu pensar, em seu agir.
Todavia, é comum nos depararmos com pessoas que não encontram formas para lidar com suas questões simplesmente porque compreenderam que não querem viver da forma como o entorno exige, mas não encontram perspectivas para viver de modo diferente. O real se coloca como limite inevitável e intransponível.
Há pequenos respiros, pequenas doses de sonho, mas o sonho não passa de ilusão, não passa de ligeiros momentos de alienação, que podem acontecer em frente à televisão, ou em abstrações diante da utopia inviável, ou na construção de personagens virtuais, ou com o uso de uma droga qualquer – lícita ou ilícita. Refiro-me aqui a processos que utilizamos para fugir de nossos contextos, para não olhar para eles, e entre tais processos é comum encontrarmos construções que nos façam pensar que somos nós os responsáveis por tudo o que se passa à nossa volta; que não ficamos bem no mundo que nos rodeia porque “nascemos com defeito”, “não servimos para este mundo”, “somos carentes de inteligência”, “fizemos escolhas inadequadas na vida”.
No artigo anterior (veja aqui), referi-me à armadilha que o “emprego dos nossos sonhos” pode significar quando não observamos a lógica que se encontra por trás de certas relações de trabalho. Nesta lógica, sempre somos nós os “culpados”, os “inadequados”, e o “conserto” pra isso pode estar na adaptação, ou mesmo no uso de medicamentos, que alterarão nossa capacidade de compreender o mundo, ou de senti-lo, ou simplesmente nos anestesiarão para que possamos suportar a existência enquanto ela durar, pois, afinal, a vida é assim mesmo. Se não me sinto bem com ela, eu é que sou o problema.
Interessante observar também o quanto o questionamento à lógica das relações de trabalho é considerado loucura. Somos educados desde cedo a viver em tal lógica. Escolas que cobram produção de seus alunos e professores, que comercializam não apenas o saber, mas também os sentimentos, os pensamentos, os modos de vida, simplesmente reproduzindo os modos de um mercado que coloca o humano em último plano, pois cada um vale aquilo que tem, aquilo que produz. Famílias, igrejas, clubes, grupos que nos cobram o mesmo, sem falar dos meios de comunicação que nos mostram a “última palavra”, as descrições cotidianas dos hábitos saudáveis, politicamente corretos, sustentáveis… E quem sustenta, suporta tais modos de vida? E o que eles sustentam, suportam?
Redes sociais: é preciso ser igual
As redes sociais, em sua maioria, apenas reafirmam tais modos, mostrando que, na intimidade, todo mundo é assim. É preciso fazer o que todo mundo faz, curtir o que a maioria curte, ou correr o risco de estar fora dos padrões; e “fora do mundo”, ser excluído. Na lógica do mercado, do consumo, sempre haverá excluídos, porque esse é o verdadeiro produto: a construção da vida via desigualdade; ter para sobressair-se, para colocar-se, para “encontrar seu lugar no mundo”.
“Você não existe”, “O que você diz não é viável”, “O que você quer é impossível”. Estas e outras informações podem corresponder ao que se vê, e é muito fácil apontar “comprovações” que justifiquem o absurdo que é pensar na existência de uma forma de vida, ou de qualquer coisa que ainda não exista de fato. Mas quantas coisas inexistentes passaram a existir na história da humanidade? Quantos modos impensados em determinadas épocas passaram a ser o modo vigente em outras? Como avaliar as condições de realização de uma ideia, de um sonho?
A questão é a lógica subjacente a tudo isso. Se uma ideia pode se constituir em produto e gerar lucro, então ela possui condições de realização, ainda que seu idealizador tenha que percorrer longos caminhos para concretizá-la. Se uma ideia não visar a constituição de um produto, ela também poderá ser adotada caso tenha potencial para ser transformada em mercadoria. Assim, rapidamente, o sonho pode virar pesadelo ao sonhador, porque alguém subverteu a ideia, a enquadrou nos padrões vigentes, e agora faz uso dela para reforçar aquilo que o sonhador pretendia transformar.
A lógica dos padrões vigentes, muito bem descrita em sua constituição histórica por Michel Foucault em seus cursos de 1978 e 1979 – Segurança, território e população; O nascimento da biopolítica –, lógica que ele denominou “racionalidade liberal”, assim como qualquer estrutura lógica, é um sistema, que possui seus limites muito bem delineados, impedindo qualquer possibilidade divergente dos objetivos fundamentais constituintes do sistema. Todavia, como qualquer sistema, também possui suas brechas, e são elas o “lugar” propício à criação de novos modos de vida, ou como diria Foucault, da existência como uma obra de arte.
Se quisermos pensar em formas diferentes para conduzir nossas vidas, teremos que pensar a partir de outros padrões. A questão é: como validar as possibilidades de realização do que pensamos, se o padrão lógico é outro?
Talvez a máxima do pragmatismo de Charles Sanders Peirce possa ajudar: “Considere-se quais efeitos que concebivelmente teriam atuações práticas, os quais imaginamos que o objeto de nossa concepção possua. Então, nossa concepção desses efeitos é o conjunto de nossa concepção do objeto.” (2009: 73).
Solução prática: duas perguntas a se fazer:
1ª) O que, daquilo que pensamos, é realizável?
2ª) Se realizado, quais efeitos poderão trazer para nós e para a sociedade na qual vivemos?
O leitor deve ter observado que só é possível responder a tais questões na medida em que temos conhecimento acerca dos contextos nos quais vivemos. É preciso conhecer muito bem a lógica vigente, os padrões de pensamento em vigor, mas é preciso, também, não se restringir a eles, quando se trata da construção de nossos modos de vida.
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_____. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
PEIRCE, C. S. Ilustrações da Lógica da Ciência. São Paulo: Ideias & Letras, 2008.