Não constitui uma novidade o processo que podemos chamar de “vingança das soluções”. Isso acontece quando uma solução que desenvolvemos para resolver determinado problema cria novos problemas. Em geral, isso ocorre obedecendo a uma determinada estrutura: não se trata de que a solução se mostre um fracasso, mas os novos problemas aparecem justamente porque a solução funciona muito bem.
Por exemplo, quando optamos culturalmente por tomar a natureza como uma coisa, como um conjunto de elementos materiais – algo que tornou possível o conhecimento científico – não pudemos evitar que isso contaminasse as próprias relações humanas. Em função do sucesso que obtivemos na instrumentalização de uma natureza material, esse padrão instrumental de relações se projetou sobre outras relações – sobre as relações entre os próprios seres humanos.
Por que nós nos transformamos em instrumentos?
Isso significa que foi o sucesso na instrumentalização do mundo material que passou a servir de referência para a construção de relações humanas. Por isso, hoje, em maior ou menor medida, podemos reconhecer que passamos a instrumentalizar também nossas relações com outras pessoas. Não é uma novidade perceber que seres humanos são utilizados como instrumentos para alcançar objetivos de outros seres humanos.
O que ocorreu foi justamente que aquela relação instrumental, altamente revestida de sucesso, expandiu-se para fora de nosso contato com o mundo natural e contaminou nossas relações com outros seres humanos. Isso parece ser um padrão repetido que explica como as soluções do passado tornam-se os problemas do presente e do futuro: a vingança das soluções.
Do ponto de vista do consumo isso também acontece. Sabemos que consumimos para saciar nossas necessidades. Porém, é sempre limitado aquilo de que necessitamos e isso gera um limite para o consumo, um horizonte além do qual não se poderia ir. A menos, é claro que esse horizonte possa ser empurrado para mais longe. Ou seja, o consumo pode se expandir sempre mais se formos capazes de inventar sempre novas necessidades. Esse horizonte móvel, que se afasta sempre para mais longe à medida que caminhamos, impede que o consumo tenha fim, que nossas necessidades sejam satisfeitas. Se o consumo promete saciar nossas necessidades por um lado, por outro ele necessita criar outras. Caso contrário, isso seria o seu fim, a saciedade e a completude do ser humano.
Por isso, a propaganda tornou-se uma espécie de segunda geração do consumo na medida em que ela tornou-se responsável por inventar novas necessidades. Dessa maneira, o impulso de gerar satisfação – que chamamos de abundância – foi sendo substituído pelo de gerar novas necessidades. A própria noção de satisfação não possui mais sentido porque significaria a morte do consumo e, portanto, da produção de bens através do trabalho.
Propaganda: propagação contínua do consumo
Nesse momento, passamos para uma espécie de terceira geração das relações de consumo em que nós nos tornamos mercadorias. Quando você faz uma pesquisa sobre qualquer coisa na internet, não decorre mais do que trinta minutos para que seu interesse seja decodificado como consumo em potencial e você comece a receber propagandas. (Embora “propaganda” seja uma palavra antiga, é melhor que “publicidade” porque faz referência à propagação contínua do consumo pela qual ela é a responsável). O que ocorre entre a sua pesquisa e a propaganda é que suas preferências ou seu interesse foram transformados em mercadoria e vendidos para potenciais vendedores.
Em último caso, o que acontece é que você e seu interesse foram comercializados, transformados em uma mercadoria no mercado de consumo futuro. Você passa a ser uma informação de consumo futuro. Aquela relação que era originalmente típica de nossa relação com nossas necessidades agora torna-se o padrão de nossas relações uns com os outros.
Muitos podem pensar que isso é muito ruim. Outros até podem pensar que isso é bom. O que me interessa aqui é chamar a atenção para a vingança das soluções: a depender de como resolvemos nossos problemas, criamos outros, novos e talvez mais desafiadores. Talvez isso sugira que não resolver nada signifique não criar mais problemas. Talvez a solução não seja simplesmente não resolver…