por Fátima Fontes
Introdução
“O sereno não guarda rancor, não é vingativo, não sente aversão por ninguém. Não continua a remoer as ofensas recebidas, a alimentar o ódio, a reabrir as feridas (o ‘ressentimento’ sobre o qual refletimos no texto anterior- nota minha). Para ficar em paz consigo mesmo, deve estar antes de tudo, em paz com os outros. Jamais é ele quem abre o fogo; e se os outros o abrem, não se deixa por ele queimar, mesmo quando não consegue pagá-lo. Atravessa o fogo sem se queimar, a tempestade dos sentimentos sem se alterar, mantendo os próprios critérios, a própria compostura, a própria disponibilidade.”.
(Norberto Bobbio, no livro “Elogio à serenidade. E outros escritos morais. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.41).
Pretendemos neste texto dar prosseguimento à reflexão que iniciamos no texto passado (veja aqui) sobre o ressentimento e suas tristes consequências.
Desta vez, avançaremos no “antídoto” contra essa tendência humana de remoer as ofensas recebidas, de alimentar o ódio, e de reabrir feridas, com o auxílio de uma virtude “fria” como chama Norberto Bobbio à serenidade.
Para esse filósofo italiano, que busca a serenidade, como recusa em exercer a violência contra quem quer que seja a serenidade é uma virtude fria e fraca na medida em que se opõe às paixões quentes e fortes como: coragem, bravura, ousadia, audácia que perpetuam as brigas e que caracterizam o espírito de vingança e luta pelo triunfo de um homem sobre o outro.
Ainda segundo Bobbio, a serenidade é o contrário da arrogância, que pode ser compreendida como uma opinião exagerada sobre as próprias competências. A pessoa serena não se enaltece, não porque se subestime, mas porque tende a identificar-se mais com as limitações humanas que com sua grandeza, e se percebe como pessoa igual às outras.
A serenidade é ainda contrária à prepotência que propõe a prática do domínio arbitrário e cruel sobre o outro. O sereno, pelo contrário, “deixa o outro ser o que é”, mesmo que esse outro seja o insolente, o arrogante e o prepotente.
Mas a sua mais importante característica nessa nossa reflexão, como antídoto contra o ressentimento, é que o sereno não se relaciona com os outros com a intenção de competir, de criar conflitos e de ser o vencedor em disputas sobre “ter a razão final”.
Acredito que só quando conseguirmos “perder” a nossa altivez guerreira, prepotente e arrogante e adentrarmos num mundo interpessoal de não violência estaremos contribuindo, verdadeiramente, para a implantação de um mundo onde a cultura de paz prevaleça sobre a nossa cultura atual de guerra macro e microssocial.
E que a busca pela serenidade, seja nossa bússola.
Serenidade, tolerância e respeito.
Parece que o fio condutor de ação da pessoa serena é o espaço da tolerância e do respeito pelas ideias e pelo modo de ser e de viver do outro. Entretanto, Bobbio nos aponta uma importante diferença entre a serenidade, a tolerância e o respeito.
Trata-se da questão de acordo entre as partes, presente na tolerância e no respeito e ausente na serenidade. Melhor explicando, para ser tolerante ou respeitoso é preciso que se mantenha um acordo das partes envolvidas em se “tolerarem” e se “respeitarem” mutuamente. Deixando de existir esse acordo, por qualquer das partes veremos se extinguir a tolerância e o respeito.
Contudo, na serenidade, tanto quanto na benignidade, na benevolência e na generosidade, todas elas virtudes sociais, não se exige a bilateralidade, ao contrário, a despeito do outro “descumprir” o acordo de tolerância e respeito, há na serenidade a capacidade de se “proteger” a postura de tolerar e respeitar. Como foi posto na epígrafe desse texto: o sereno atravessa o fogo das “decepções relacionais” sem se queimar, navega na tempestade dos sentimentos sem se alterar, mantendo os próprios critérios, a própria compostura e a própria disponibilidade.
Postura serena é difícil e desafiadora
Difícil e desafiadora essa “postura serena”, afinal vivemos num mundo regido pela polarização e disputas, em que quase se torna um crime ser, crê e pensar diferente do outro. Vivemos em “luta” contra o outro, querendo ser melhor, saber mais, vencermos sempre.
Mas só imagino relacionamentos verdadeiramente tolerantes e respeitosos, se conseguirmos desenvolver, dia a dia, avaliando nossas dificuldades em mantermos esse “modo próprio” de ser não violento, a partir da decisão pessoal de seguirmos em frente, “nadando contra a corrente” bélica que nos empurra para as disputas e intolerâncias cotidianas.
Mas como podemos desenvolver a “serenidade” que nos fará, verdadeiramente, tolerantes e respeitosos?
Além de um exercício contínuo de autoconhecimento, de uma prática disciplinada de meditação cristã, pratico diariamente há cerca de um ano e meio os exercícios propostos pelo Mestre Pai Lin, no Tai Chi Pai Lin, que propõe e se sustenta na milenar Medicina do Equilíbrio Oriental. Tenho com isso aprendido, a duras penas, a me esvaziar, a deixar minha mente quieta, meu espírito livre de expectativas sobre o “que deve” e o que “não deve ser” sobre qualquer coisa.
Mesmo assim, me pego em luta constante com minha quente raiz nordestina, passional, guerreira, luto também com as marcas de intolerâncias e desrespeito sobre mim impetradas em minha socialização, sobretudo na infância, assim como combato algumas das aprendizagens religiosas que carrego e que infelizmente me aproximaram de uma culpa e de uma perfeição inalcançável, intolerante e desrespeitosa.
Sinto que hoje posso dançar melhor uma brincadeira típica de meu amado estado de Pernambuco que é a dança dos “Caboclinhos”, oriunda dos indígenas que habitavam a região e que nos deixaram o legado de “brincar de lutar”, batendo o pé num movimento delicioso de ritmos e parceria. O Caboclinho precisa ser dançado “com o outro”, é preciso estar atento ao seu ritmo, ao seu movimento, se não a dança não acontece. E consigo dançar com uma “faceirice serena”, me permitindo errar e outra vez buscar acertar o passo.
Estou utilizando esses recursos, mas desafio cada leitor a achar o seu próprio caminho para desenvolver a serenidade e com ela a tolerância e o respeito.
Serenidade e simplicidade
Mas há ainda uma questão a ser levantada em relação à serenidade, ela tem um pressuposto e uma consequência: a “simplicidade” é um pressuposto da serenidade, assim como a serenidade é um pressuposto da “compaixão” e da “misericórdia” que já analisamos em textos anteriores.
Porém não nos confundamos: a “simplicidade” nada tem a ver com a incapacidade de se combater intelectualmente por uma ideia ou posição, mas sim a ver com o desenvolvimento de certa “inteligência emocional”, que nos propiciará maior limpidez e acuidade perceptual, para não cairmos nas armadilhas das ambiguidades e contradições das “complicações” intelectuais e interrelacionais, que nos impediriam de nos mantermos firmes em nossas convicções e posturas serenas.
Nosso filósofo guia nesta reflexão, o Norberto Bobbio nos assevera que “dificilmente o homem complicado pode estar disposto à serenidade: vê intrigas, tramas e insídias por toda a parte, e consequentemente tanto é desconfiado em relação aos outros, quanto inseguro em relação a si”.
Alcançar a simplicidade é tarefa árdua e exigente: exige disciplina
Mas aí, eu advirto: alcançar a simplicidade é tarefa árdua e exigente, que longe de parecer “ser natural”, exige que nós, adultos, que perdemos nossa espontaneidade natural, a partir das exigências e repressões às quais fomos submetidos em nosso processo socializador educacional, nos conheçamos cada vez mais, tenhamos a humildade de reconhecer nossas marcas, feridas e “vícios” e de passarmos por uma autoanálise diária sobre nós mesmos e nossas ações.
Aprender a “ser simples” exige disciplina, amor por si mesmo, compaixão por si mesmo e o delicioso compromisso pessoal de “desesperar jamais…”. Será preciso seguir a sábia prescrição do profeta Jeremias, que no auge de suas complicações pessoais, mentais, afetivas e religiosas “decidiu”: trazer à memória, o que pudesse lhe dar esperança, afinal ele descobriu sabiamente que bom é ter esperança. (Jeremias 3: 21-23).
E que na busca pelo simples, desenvolvamos a serenidade e nos tornemos compassivos face ao outro, o que nos permitirá fazer o que chamaria uma verdadeira “hemodiálise da alma”, retirando dela toda a sombra que os sentimentos sombrios de raiva, rancor e inveja deixaram. Tornando-nos assim arautos e representantes de um mundo relacional melhor.
E para terminar…
Chegamos ao fim desta reflexão, e mais uma vez desejo ter proporcionado aos leitores a boa partilha de ideias que possam promover a melhoria de nossa vida com o outro.
Como o faço de praxe, neste tópico costumo deixar que os poetas falem e nos arrematem a reflexão. Desta feita pedirei ao filósofo Norberto Bobbio, que siga nos inspirando. Será dele também a epígrafe final:
“Amo as pessoas serenas, isto sim, porque são elas que tornam mais habitável este nosso “cercado”, a ponto de fazerem com que eu pense que a cidade ideal não é aquela fantasiada e descrita nos mais minuciosos detalhes utópicos, onde reinaria uma justiça tão rígida e severa que se tornaria insuportável, mas aquela em que a gentileza dos costumes converteu-se numa prática universal (como a China idealizada pelos escritores do século XVIII).
(Norberto Bobbio, no livro Elogio da serenidade. E outros escritos morais. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.45).