Em nome do “amor” o céu é o limite

por Roberto Goldkorn

Lembro que estava em um taxi indo a caminho de minha separação conjugal. Estava decidido, a situação havia chegado no limite da suportabilidade. No caminho, os filmes curtos de tudo que tinha acontecido passavam na minha tela mental. Eu estava muito magoado e ao mesmo tempo cheio de esperanças românticas de um recomeço patrocinado por um grande amor. De repente, no rádio do carro, começa a tocar justamente a música que embalou, anos atrás nosso encontro e foi a nossa trilha sonora.

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Meus olhos se encheram de lágrimas e vi nisso uma mensagem do Cosmo. Amoleci. Uma outra ideia se formava na minha cabeça: seria a mensagem secreta para uma nova chance. A música dizia justamente isso: dê uma nova chance ao amor. Cheguei ao encontro de definição totalmente mudado. Mas logo de início percebi que "o outro lado" não tinha ouvido a mesma música, ou o Cosmo não tinha encontrado a destinatária da outra metade da mensagem. Me senti um idiota quase perfeito. A música me enganou? O Cosmo me induziu ao erro? Eu havia interpretado errado as mensagens do "oculto"?

Nada disso. Anos depois fui entendendo que a nossa mente, a minha principalmente toda mística, tem uma inclinação a ver na tela da vida um sentido, como as pessoas que enxergam a face de "Cristo" numa folha carcomida de árvore, ou a figura de Nossa Senhora na mancha de uma janela suja. O "sentido" já estava escondido em camadas mais profundas da mente, não admitidas pela nossa emoção/razão, até que um efeito externo abre esse baú e pimba: tudo passa a "fazer sentido"! O tal sentido nada mais é do que um desejar profundo, muitas vezes em colisão com aspectos racionais, ou com um muro erguido pelas mágoas e ressentimentos admitidos como óbvios e justos.

O amor é um programa tão poderoso que busca sua justificativa em qualquer canto vira-lata do painel da vida. As barreiras da experiência negativa na maioria das vezes não são páreo para uma "mensagem" na garrafa, ou numa foto antiga onde se lê: "Vou te amar para sempre!"

Uma cliente insistia para me pagar por um serviço sui generis: eu deveria manter seu ex-amante pensando nela por pelo menos três anos! Ela não queria (sabia que era impossível, ele havia voltado para a ex-mulher) retomar o relacionamento, queria que o ex-love ficasse preso à sua imagem e aos momentos maravilhosos que passaram juntos nos longos dois meses em que estiveram juntos. O amor ou o que as pessoas pensam ser amor, é uma ideia resistente, passa por cima de tapas, chutes e humilhações, para que se cumpra seu desígnio. Às vezes um dos lados só desiste quando recebe o tiro ou a facada fatal.

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A cultura do amor romântico, ou do amor que vence tudo, é poderosa, plasma comportamentos muito difíceis de mudar, porque são antigos arquétipos medievais do amor cortês – imagens arraigadas de Romeus e Julietas imortais – onde o final feliz não é obrigatório, afinal assim é o amor.

Quantos corações românticos e analfabetos resolvem dar uma segunda (terceira, quarta, quinta) chance ao amor, para descobrir que era a última, último ato de uma mente controlada pela irracionalidade blindada.
Por isso o "maníaco do parque" recebe centenas de cartas de amor e pedidos de casamento por mês, e os brutos, ogros e misóginos não ficam sozinhos – o amor que tudo vence está sempre batendo à sua porta para lhe renovar o estoque de vítimas.

Uma leitora me diz que seu namorado tem muito ciúme dela, que a persegue sistematicamente, e já a agrediu de forma covarde e violenta. Ela já rompeu com ele várias vezes… mas o que fazer quando ele volta choroso, dizendo-se arrependido e dizendo as palavras mágicas: eu te amo! Ela me faz a mesma pergunta que já ouvi centenas de vezes depois de ouvir centenas de vezes a mesma história, onde só os nomes e endereços mudam.

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Que poder eu posso ter diante de um tão tenebroso e fantástico poder… do "amor"? A única coisa que tenho para oferecer é a razão, pobre desvalida razão. De que vale? A razão pode preservar a vida de minha cliente, pode poupar-lhe o terror da violência, a angústia de dormir com o inimigo, mas não embala seus sonhos com o fundo musical de uma música sertaneja universitária.

A visão torta do amor, é um reflexo exato do nosso nível de evolução espiritual, assim como a pervertida visão religiosa sectária está em muitos lugares regredindo a padrões do século XV.

Sabemos que o desenvolvimento da mente coletiva é assimétrico e que temos, no mesmo tempo presente, estratos culturais que vão da idade da pedra até o século XXII.

O anacronismo cultural e psíquico (os dois estão intimamente ligados) cobram sempre um preço alto em dor e doença. Arrastam muitos em sua avalanche primitiva. Resta aos que insistem em viver as conquistas da civilização, as conquistas da mente coletiva e da individual, salvar-se dessa maré vermelha de passionalidade e irracionalidade. O desenvolvimento espiritual está sem dúvida na direção da glória humana, de seu bem-estar, da universalização de sua generosidade, e da aceitação do amor como fonte de vida, de alegria e PAZ.