por Monica Aiub
Alguns partilhantes (pacientes) chegam ao consultório de filosofia clínica com questões relacionadas à dificuldade em confiar no outro. Assustados com o que se passa em nossa sociedade, criam uma visão *hobbesiana do mundo, vendo o ser humano como seu próprio predador: um ser egoísta, que visa, sempre e acima de tudo, a autopreservação.
Questionamentos sobre os motivos pelos quais alguém se interessa por eles, dúvidas sobre a legitimidade de suas amizades, históricos de traição e subsequente dificuldade em voltar a confiar são elementos presentes em suas colocações.
As traições relatadas ocorrem entre familiares, palavras dadas e não cumpridas, relacionamentos afetivos, relações no trabalho, relações comerciais e muitas outras situações. Você já foi traído (a)? Como reagiu a isso? A traição abalou sua confiança naquela pessoa? Abalou sua confiança em todos os seres humanos? Você conseguiu entender o que gerou a situação de traição em sua história?
Algumas pessoas generalizam suas experiências e, uma vez traídas, passam a desconfiar de tudo e de todos. Outros generalizam experiências alheias, e ainda que não tragam em seu histórico situações de traição, não confiam em outros porque já viram muitos que foram traídos por pessoas que lhes pareciam confiáveis. Outros, ainda, independentemente de terem vivido situações diversas de traição, não generalizam a experiência e consideram cada pessoa como única e confiável, até que se prove o contrário. Outras, mesmo tendo sido traídas por uma pessoa, voltam a confiar nela, porque, afinal, o ser humano é capaz de mudar, de aprender com os erros.
A visão que temos sobre o ser humano, ou sobre alguns seres humanos com os quais nos relacionamos, influencia fortemente nosso posicionamento diante das pessoas. Nesse sentido, o filósofo clínico assume a postura de suspensão dos juízos, e independentemente do histórico da pessoa apresentar situações-padrão de traição, considera sempre a possibilidade de ser de outra maneira.
É exatamente nossa capacidade de flexibilidade, de aprendizagem, de plasticidade, que nos permite a criação de novas formas de viver e de lidar com nossos problemas. Apesar de considerarmos os padrões na historicidade do partilhante como um dos critérios para a compreensão da estrutura de pensamento, sabemos que a repetição de um padrão não é necessária, ela é apenas uma possibilidade entre tantas outras.
Compreender a gênese de um conceito, de uma postura, de uma forma de vida pode indicar as possibilidades de plasticidade e de aprendizagem da pessoa em questão. Esse princípio é fundamental para a filosofia clínica, pois se o filósofo clínico não acreditar que aquela pessoa é capaz de criar novas formas de vida, de promover movimentações existenciais significativas, seu trabalho não tem razão de ser.
John Searle, no livro A redescoberta da mente, aponta a consciência como a capacidade humana de flexibilidade, de criatividade, atribuindo a ela uma vantagem seletiva para os humanos (e outros seres que possam ser dotados de consciência). Segundo ele, nosso organismo tem representações causadas por estados de coisas no mundo; ao mesmo tempo, através de suas ações intencionais, o mesmo organismo provoca estados de coisas no mundo, por meio de suas representações conscientes. Em outras palavras, temos a capacidade de criar porque nossa consciência possui uma variedade de funções, permitindo ampla flexibilidade, alterando o organismo e o mundo a sua volta.
Na clínica, observamos que algumas pessoas conseguem encontrar estados de forte flexibilidade a partir das necessidades do ambiente – ponto que observamos no tópico Análise da Estrutura (clique aqui). Outras conseguem, a partir de suas perspectivas, provocar alterações em seu entorno, construindo novas formas de vida não somente para si mesmas, mas para o outro também.
Sintonia fina
Imagine uma espécie de “sintonia fina”, através da qual nos conectamos com o mundo, com os outros, e até conosco. Agora imagine que várias dessas “frequências” ocorrem ao mesmo tempo. Quando você se depara com uma situação onde há diversas frequências ocorrendo ao mesmo tempo, com qual você sintoniza? Com a sua ou com a de outro? Com a sua ou com a do ambiente? Qual prevalece?
Há pessoas que rapidamente aderem à sintonia alheia, ficam impregnadas de um modo de sentir, viver e pensar que não é o seu, como se ocorresse uma forma de “contaminação” (uso o termo contaminação para situações desse tipo que não são desejadas, que não são fruto de uma deliberação, independentemente de um juízo de valor). Outras, deliberadamente, optam por modificações radicais. Há também pessoas que dominam os ambientes com suas formas de ser. O que é melhor, impregnar ou ser impregnado? A princípio, não há como saber, pois tudo dependerá dos contextos onde esse movimento ocorra.
Quantas vezes você já foi impregnado(a) por uma forma de existência alheia? Quantas vezes você já influenciou modos de ser de outras pessoas? Qual foi o resultado disso? Como você avalia seu posicionamento em tais situações?
Há pessoas que não se permitem frequentar determinados ambientes, pois esses lhe fazem mal, trazem pensamentos, sentimentos indesejados, provocam posicionamentos irrefletidos. Outras, independentemente do ambiente em que se encontrem, mantêm sua estrutura, não são influenciáveis, nem se permitem mergulhar num estado de absorção. Sabemos que isso varia, dependendo da situação vivida. Por isso é preciso conhecer seus limites, conhecer quais os ambientes que você pode visitar sem riscos, ou avaliar quando é possível enfrentar os riscos.
A crença na flexibilidade humana é um elemento fundamental ao filósofo clínico. Para que o trabalho possa ocorrer, é necessário que se estabeleça uma relação de mútua confiança: o partilhante confia suas questões, sua historicidade ao filósofo clínico, e esse confia na plasticidade humana de seu partilhante. Somente a partir dessa mútua confiança é possível a criação de novas formas de ser.
Assim, se você me pergunta: “em quem você confia?”, respondo-lhe que no ser humano, na capacidade de movimentação, de plasticidade, de poder ser diferente, que é parte constituinte da humanidade. Não fosse assim, não seria possível trabalhar como filósofa clínica. Contudo, capacidade e possibilidade não implicam em necessidade. Assim como a pessoa pode optar por uma movimentação que transforme sua existência, poderá escolher o não movimento, a manutenção de seu estado atual.
Como você avalia seus movimentos existenciais? Você faz uso de sua flexibilidade e sua criatividade para construir a si mesmo(a) ou opta por manter-se exatamente como está? Por quais motivos opta por uma ou outra posição? Você acredita que as pessoas podem transformar suas formas de vida radicalmente?
*Thomas Hobbes (Westport (Malmesbury), 5 de abril de 1588 – Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679) foi um matemático, teórico político, e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651).
Referências Bibliográficas:
AIUB, M. Para entender filosofia clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
HOBBES, T. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SEARLE, J. A redescoberta da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997.