por Fátima Fontes
Introdução
"Desde 1929 eu já havia concebido a diferenciação entre três grupos de valores, ou seja, de três possibilidades de encontrar um sentido para a vida – até seu último instante, até o último suspiro. Essas três possibilidades de encontrar um sentido para a vida são: – uma ação que realizamos;
– uma obra que criamos; ou uma vivência,
– um encontro e um amor."
(Viktor Frankl, livro: O que não está escrito nos meus livros. Memórias – SP: É realizações Editora, 2010, pág.75).
Olá queridos e queridas leitores (as), outra vez marcamos um encontro com nossa reflexão sobre nós e nossos vínculos, assunto sobre o qual muito me encanta pensar e viver.
Em momento de antecipada correria de fim de ano (poucos anos atrás era dezembro, mas neste ano, desde o fim de outubro), com aquilo no que transformamos nosso período cristão natalino. Ou seja, um momento de desenfreado consumo, e no qual, particularmente, me torno mais atenta ao que acontece em nossos vínculos interpessoais, percebo nas pessoas que me cercam um misto de euforia com alternados momentos de vazio e de busca de um sentido para a vida.
E é sobre a importante e necessária busca de um sentido para nossa vida que desejo refletir por agora. A bússola da reflexão será outra vez propiciada por meus bons encontros, aqueles que potencializam a ação do ser, como nos diz Espinosa, o filósofo, lembram? Todos ocorreram nesta intrigante e desafiadora selva de pedra na qual privilegiadamente habito que é a cidade de São Paulo, dois deles enquanto me deleitava com a audição da impecável Orquestra Sinfônica Heliópolis, na belíssima Sala de Concertos, a Sala São Paulo, dentro da Estação ferroviária Júlio Prestes, em nossa capital.
E o terceiro deles, ocorreu em momento de também prazer para mim que é o de ler, enquanto percorria com atenção as folhas impressas (ainda as prefiro muitíssimo mais, que seus congêneres digitais) de jornal paulistano de grande circulação em sua edição dominical.
Trata-se de meu encontro com três figuras humanas de primeiro calibre: o inspirador maestro Sílvio Baccarelli de 82 anos que cumpriu uma promessa que se fez aos 5 anos de idade, o encantador maestro Isaac Karabtchevsky, que em 27 de dezembro completará 78 anos, cheios de realizações e sentido e o jovem paulistano de 22 anos Victor Dragonetti, mais conhecido como Drago, fotógrafo por existência que em sua juventude, já encontrou um rico sentido para sua vida. Que eles nos sirvam de inspiração para nosso viver.
Que as inspiradoras vidas abarrotadas de sentido desses três nos estimulem a sonhar e a construir um mundo melhor para nós e para nossas relações.
Silvio Baccarelli e Isaac Karabtchevsky: utilizam a música para cuidar das pessoas
Quando assisti ao concerto da Orquestra Sinfônica Heliópolis, e fui impactada com a beleza com que aqueles jovens executavam três peças de Maurice Ravel, e dentre elas o majestoso Bolero, extasiada me perguntava, onde esses jovens poderiam estar se algumas pessoas, desalojadas de suas zonas pessoais de conforto, não tivessem se obstinado a lhes dar uma oportunidade de desenvolverem seus talentos, o quanto eles e nós perderíamos?
Mas como tudo isso começou? E não há como falar dessa orquestra, sem falarmos na pessoa humana que a sonhou, idealizou e a realizou, nos mostrando que a vida com sentido nos desaloja de nossos mundos individuais e nos lança para junto do outro. O maestro Silvio Baccarelli, que hoje tem 82 anos e que aos cinco anos, órfão de pai, na pequena cidade de Monte Belo, em Minas Gerais, desejava fazer algo por ele mesmo e por todas as crianças que sofriam, encontrou nisso um sentido para a sua vida.
Era mais ou menos sete da manhã do dia 17 de junho de 1996, um incêndio acordou Heliópolis, bairro que abriga a segunda maior favela de São Paulo, com cerca de 150 mil moradores. O fogo destruiu um edifício de cinco andares. Quatro pessoas morreram uma delas, um bebê. Tal qual centenas de pessoas que acompanharam a tragédia pela TV, o maestro Silvio Baccarelli parou diante da tela e ficou profundamente impactado com o que assistia.
E era esse o cenário: era uma correria de gente tentando salvar o que tinha, tentando salvar a família, e parecia que corriam porque essa era a única coisa a se fazer. E, diferentemente da maioria das pessoas, ele não seguiu a sua rotina pessoal quando a notícia esfriou. Ele a desviou para a favela. O regente mineiro procurou as lideranças comunitárias da favela, e se prontificou a dar classes de música para as crianças que desejassem, já que era isso que ele sabia fazer. Com o aceite da população reformou um casarão na Vila Mariana, de modo que ali houvesse um auditório e reuniu, então, 36 crianças que moravam e estudavam em Heliópolis e passou a ensinar a elas distintos instrumentos musicais.
Sua ideia era iniciar um grupo de crianças na música erudita, proporcionar um pouco de diversão cultural e, caso as coisas dessem certo, talvez esse aprendizado lhes propiciasse uma carreira. E as coisas deram tão certo que, nos 17 anos seguintes, unido a outros músicos que também abraçaram a causa e a várias outras pessoas que deram o perfil institucional que hoje o Instituto Baccarelli tem, a sua Orquestra Sinfônica de Heliópolis, tornou-se uma referência no Brasil e no mundo.
No formato atual do Instituto Baccarelli, cuja sede se aloja num moderno e belo prédio (uma antiga fábrica de sucos) desenhado pelo arquiteto Tomie Otake, construído pela Pró-Vida e é encravado no meio da favela, existem quatro níveis de orquestra: desde o iniciante de cordas, o infanto-juvenil, o juvenil, até, por fim, o nível Heliópolis. A porta de entrada é a musicalização, que recebe crianças de 4 a 6 anos de idade. Depois, elas passam pelos corais infantis. Na etapa seguinte, os alunos estudam um instrumento, primeiro de forma coletiva. As aulas individuais são o último degrau antes da formação orquestral. O projeto atual é desenhado para atender cerca dois mil alunos.
Agora o mais coerente: para uma população que habita a região: Heliópolis é um bairro do distrito de Sacomã, na região sudeste da cidade de São Paulo e nascida nos anos 1970. Já foi considerada a maior favela da cidade e tem em torno de 60 mil habitantes, onde apenas 0,3% deles tem ensino superior: a partir dos 13 anos, os alunos que participam do Instituto Baccarelli podem começar a ser remunerados pelo próprio Instituto, uma vez que é comum que haja pressão familiar, nessa idade, para que o jovem ajude no precário orçamento das famílias. Há bolsas para estudantes e para os membros da Sinfônica de Heliópolis a partir de R$1.100. Existem alunos recebendo mais de R$ 3 mil por mês.
E sobre os sonhos e realizações do atual diretor artístico e regente da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, o maestro Isaac Karabtchevsky? No início de 2011, Karabtchevsky recebeu o convite para dirigir essa orquestra, e o aceitou de pronto, ele que desde 2004 dirigira a Orquestra Petrobras Sinfônica, e em seu vasto e rico currículo já havia sido Diretor Artístico, dentre outras orquestras, da Orquestra Tonkünstler de Viena e também teve a mesma função na Orchestre National des Pays de la Loire (ONPL), na França, tendo sido condecorado, em 2007 com a comenda Chevalier des Artes et des Lettres.
Qual o sentido de aceitar tão de pronto o convite da Orquestra Sinfônica Heliópolis, e é o próprio maestro quem responde: o projeto do Instituto Baccarelli se constitui hoje para ele, como um dos maiores desafios que ele já recebeu nos últimos tempos, pois veio ao encontro de sua maior aspiração que é a de desenvolver, em comunidades brasileiras, a formação de orquestras jovens.
E foi com grande emoção que antes de iniciar a audição da Orquestra Sinfônica Heliópolis o maestro Karabtchevsky falou da grande experiência que ele estava vivendo à frente dessa orquestra, e do importante intercâmbio que fora firmado entre o Instituto Baccarelli e um dos maiores Conservatórios de Música de Israel, onde três jovens músicos da Orquestra estão estudando há um ano.
Victor Dragonetti fotografa São Paulo para abraçar a cidade e seus habitantes
O jovem fotógrafo Victor Dragonetti, o Drago, é um dos fundadores do SelvaSP (selvasp.com), que na definição do grupo são um bando de fotógrafos de rua que "compartilham a prática do ócio criativo" e que se dispõem a "sentir as ruas da maior cidade do hemisfério sul".
Esses jovens fotógrafos declaram-se antes de tudo, jovens de espírito, e têm a cidade de São Paulo como musa inspiradora e se dedicam a devolver a ela uma parte do que lhe tomam. As imagens produzidas são exibidas e distribuídas em forma de zines, são coladas em lambe-lambe e penduradas em varais nas ruas da cidade.
Se autodefinindo, o Drago se apresentou assim, em entrevista dada ao jornalista Christian Carvalho Cruz, publicada no referido jornal paulistano no domingo de três de novembro de 2013: fotógrafo independente, irreverente, desapegado, duro, cheio de dúvidas existenciais e que trabalha com lentes antigas, sem foco automático. E foi assim que a fotografia entrou em sua vida; ele tinha 14 anos, era um mau aluno, que já passara por nove escolas distintas e não tinha interesse em quase nada, até que um dia achou uma câmera Zenit no quarto da mãe, olhou através do visor da câmera e ali "um mundo mágico se abriu" para ele.
O grande afã desse jovem fotógrafo é o de usar a fotografia para mostrar a vida na cidade que passa a pertencer, segundo ele, a quem a trucida: os carros, os estacionamentos, às grandes construtoras. Fotografar a cidade é para ele é um exercício de "abraçar a cidade, tomar posse dela, sentir, pelo menos naquele momento, que ela é minha e não dos poderosos".
Essa cidade e seus habitantes tem a presença de Drago sempre muito perto de seus campos de luta: sejam os campos de batalha, que desde junho deste ano divide almas e cérebros sob gás lacrimogêneo, seja o campo da batalha cotidiana de gente comum que sai com o sol para trabalhar, toma transportes coletivos cheios, pede esmolas, vende flores, vende os corpos na rua… Gente que está na cidade, mas não se apropria dela.
Que notável sentido para sua vida esse jovem encontrou, e ele nos provoca do alto de seus 22 anos, pois diferente da maioria das pessoas de sua idade e de qualquer idade, que estão em busca somente dos próprios objetivos, Drago se encontra com o outro em seu processo de viver e de dar sentido à sua vida. E nós?
E para terminar: e cada um de nós que sentido quer dar para a própria vida?
Reflexão lançada, chegou a hora da despedida, e fica aqui um apelo: provocados por pessoas de carne e osso, sujeitas às múltiplas necessidades do viver como as aqui apontadas, quero convocar os leitores a saírem de sua zona pessoal de conforto e a pensarem na razão pela qual vivem, e de preferência que essa difícil e incomodativa pergunta, possa ser respondida na direção do si mesmo e do outro, ok?
E como não poderia deixar de fazê-lo, segue uma canção para nos embalar neste final de reflexão, e que está muito na direção do tema deste artigo, afinal a grande certeza do viver é o morrer e que tal pensarmos em nossos epitáfios e no que queremos ter escrito neles: fulano que nasceu em… e morreu em….. Viveu de que jeito e para quê?
Epitáfio
Titãs
Compositor: Sérgio Britto
Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar…
Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar…
Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr.