por Ceres Araujo
A qualidade das interações entre enteados e madrastas e padrastos merece cada vez mais observação e análise, por serem essas relações cada vez mais frequentes na sociedade pós-moderna.
Nos contos de fada e na literatura em geral, a madrasta e o padrasto foram sempre retratados como pessoas cruéis e indesejáveis. Representavam o símbolo da maldade no imaginário das pessoas.
Entretanto, na atualidade, época de tantos casamentos destituídos e reconstituídos isso mudou e mudou para melhor. Hoje, conviver com madrasta e padrasto é uma situação comum a muitas crianças, adolescentes e adultos. A relação entre enteados e madrastas e padrastos é uma relação delicada, ancorada no afeto cultivado ao longo do tempo. É uma nova relação de filiação, fundada na afinidade e mantida pela cordialidade. A criança, na reconstituição da família, pode ter a chance de criar relações diferenciadas e saudáveis com esses novos adultos na sua vida, que podem vir a tê-lo como filho do coração.
A separação dos pais é uma adversidade, traz perda, dor e sofrimento. Porém, enfrentamentos positivos, aprendizados de vida, condutas resilientes (de superação) são possíveis frente às separações. Quando os pais reconstituem a conjugalidade com outras pessoas, o marido da mãe se torna o padrasto e a mulher do pai, a madrasta. Porém, isso não é tão simples ou automático. São processos complexos, o deixar de ser simplesmente o marido da mãe para se tornar o padrasto, assim como o deixar de ser só a mulher do pai para se constituir como madrasta.
Tais processos implicam em uma disponibilidade interna verdadeira, em uma grande generosidade e em uma imensa paciência. Cativar e acolher o enteado, uma criança ferida pela perda sofrida com o afastamento de um dos genitores, uma criança que facilmente se vitimiza, que pode se tornar manipuladora e agressiva, requer uma força heroica e uma persistência infinita.
Enteado vem do latim ante natus, o que nasceu antes. No Português antigo era grafado como antenato. A madrasta ou o padrasto ganha uma criança “nascida antes” e precisa conquistá-la. Cumpre às madrastas e aos padrastos usar de uma sedução criativa na relação com sua criança que “nasceu antes” e que não tem a possibilidade psicológica de aceitá-los imediatamente. Isso porque fantasias de mais perdas inundam a mente da criança.
Vivendo uma situação de perda, ao ser afastada de um dos genitores, a criança inevitavelmente se questiona sobre o que irá acontecer a seguir: o olho da mamãe não brilha mais pelo papai, mas por outro homem. Ou o olho do papai não brilha mais pela mamãe, mas, por outra mulher. Quem é essa pessoa que vem agora “roubar” a mamãe ou o papai? Acresce-se a isso, a percepção da criança de que ela não é nada dessa nova pessoa. Com o tempo, à medida que o filho deixa de se sentir ameaçado, ele consegue elaborar a perda sentida e pode começar a se deixar conquistar e a aferir os ganhos com o novo relacionamento de filiação.
De forma análoga, o filho adolescente e o filho adulto, nas separações e nas reconstituições, vivem processos muito semelhantes. Possuem, é certo, pela idade, maior capacidade de elaboração e melhor possibilidade de compreensão intelectual, mas a dor emocional é a mesma da criança e as defesas se instalam igualmente.
Assim, é função das madrastas e dos padrastos a conquista de seus enteados, por meio de uma sedução criativa, consistente, ética em um relacionamento que demorará a se estabelecer em mão dupla, isto é de forma recíproca e simétrica. Algumas vezes, apenas na geração seguinte se vê como está bem estabelecida a relação de filiação. É quando o enteado percebe que a mulher de seu pai, que se tornou sua madrasta ou o marido de sua mãe, que se tornou seu padrasto são definitivamente os verdadeiros avós de seus filhos. Surge, nesse momento, a possibilidade de se celebrar com êxito a família, dessa forma reconstituída.