por Leonardo A. M. Cosentino – psicólogo componente do NPPI
Ao olharmos para o percurso da evolução humana podemos observar que as mais avançadas tecnologias surgiram, em geral, como desdobramento da base tecnológica de nossos ancestrais, que viveram de caça e coleta há milhões de anos atrás. A transmissão de informação por vias não biológicas possibilitou um grande acúmulo e processamento de informação sobre o ser humano e aquilo que o circunda. Este processo permitiu a manufatura e utilização de ferramentas voltadas à solução de problemas enfrentados por nossos ancestrais caçadores-coletores. Conseqüentemente, a ferramenta se tornou algo capaz de alterar as condições de sobrevivência e reprodução da própria espécie que a concebeu e a utilizou. As evoluções biológica e cultural estavam então entrelaçadas. Tal entrelaçamento foi tão significativo que acabou tornando a espécie humana dependente dos adventos tecnológicos que produziu.
Ao longo de milhões de anos, a capacidade de produção simbólica, e de atribuição de significados e valores abstratos acelerou a produção tecnológica de modo exponencial. A velocidade das modificações propiciadas pelo advento de novas tecnologias supera em muito a velocidade das transformações biológicas. De certo modo, essa disparidade nos tornou biologicamente obsoletos dentro de um contexto que nós mesmos criamos. Especialmente, após a passagem do modo de vida de caça e coleta para o agrícola, alavancada pelo domínio das técnicas de domesticação de plantas e animais, o ambiente foi rapidamente modificado.
Novas tecnologias para acompanhar os avanços
Essas modificações não foram, e não são, acompanhadas por mecanismos anatômicos e mentais evoluídos para lidar com esse novo cenário, e seus novos desafios. Isso nos forçou, e ainda nos força, a produzir novas tecnologias capazes de lidar com essas novas dificuldades. Desse modo, inovações tecnológicas são produzidas na busca por soluções para problemas que antes não existiam. Paradoxalmente, novos problemas surgem nesse processo, e em uma velocidade ainda maior. Como um cachorro que corre atrás de seu próprio rabo. Em suma, os cenários e demandas atuais se modificam com velocidades muito maiores do que aquelas transformações projetadas para resolvê-las.
Atualmente, estamos diante de um aumento da complexidade dos sistemas do ambiente no qual estamos inseridos. A era da informação, o mundo em rede e a presença maciça do computador em praticamente tudo aquilo que nos toca no cotidiano, diminui nossa habilidade de atuar no mundo de forma precisa e relevante. Esse cenário exige que busquemos outros modos de lidar com sistemas complexos, interfaces inteligentes e fusões de dados. Fazem-se necessários dispositivos capazes de processar e organizar grandes quantidades de informação. Informações estas cada vez mais parciais, imprecisas, ambíguas e pouco estruturadas.
A máquina computador, desde seu advento, passou de uma “grande calculadora” para uma ferramenta que concentra informação, conhecimento, entretenimento e trabalho. Desse modo, transformou-se num meio de criação, simulação e comunicação, mas sem perder sua função como ferramenta na execução de ações voltadas à resolução de problemas computáveis. Contudo, a computação digital convencional possui uma característica determinística, uma arquitetura repartida e operações e processamentos seqüenciais e mecânicos. Estes atributos já não mais dão conta da complexificação das demandas atuais.
Para lidar com essa problemática, alternativas computacionais surgiram. Curiosamente, algumas correntes mais promissoras são baseadas na maior solucionadora de problemas produzida pela natureza: a adaptação guiada pela seleção natural. Mas como o processo que torna uma espécie mais adequada ao seu ambiente, através da sobrevivência e reprodução de variantes favorecidas, pode ajudar na resolução de problemas computacionais? A chave para esta resposta está exatamente na aplicação das idéias evolucionistas para a esfera da computação.
Evolução, no sentido biológico, é a modificação das espécies ao longo do tempo. A adaptação é o processo pelo qual uma espécie muda através da seleção natural, tornando-se mais ajustada ao seu meio. Nesse contexto de mudança, estamos nos referindo a passagem de um certo conjunto de traços a gerações seguintes. Por gerações o que sobrevive não é o indivíduo, mas as variações que ocorrem em características que afetam a chance de sobrevivência e reprodução. Essas variações colocam os indivíduos que as possuem em posições mais vantajosas em relação aos demais, conferindo-lhes maiores chances de sobrevivência e reprodução. Dessa forma, determinadas características são selecionadas.
Computação evolutiva
A computação evolutiva é um dos campos de pesquisa inspirado nos mecanismos biológicos da evolução. É uma ramificação da ciência da computação, especificamente da Computação Natural e Bioinspirada. Esta esfera do conhecimento dá seus primeiros passos por volta das décadas de 50 e 60, mas se consolida realmente nos anos 70. Valendo-se de princípios encontrados em sistemas naturais tais como seleção, reprodução, recombinação e mutação, este ramo desenvolveu técnicas para aperfeiçoar e ampliar o uso da computação para além dos algoritmos exatos, do conjunto de instruções seqüenciais e lineares.
Consideremos este exemplo: a tarefa de um robô de navegação autônoma é sair de um ponto e chegar a outro. Entretanto, há um obstáculo entre o ponto de partida e de destino. Caso o robô tenha implantado um sistema puramente reativo (algoritmo exato), ao seguir em linha reta em direção ao seu destino, este não consegue contornar o obstáculo para atingir seu objetivo. De forma simplificada, isto se dá pela linearidade de sua programação. Por outro lado, um robô controlado por algoritmos evolutivos, meta-heurísticos, é capaz não só de contornar o obstáculo, mas também de otimizar sua trajetória em direção ao seu objetivo se exposto repetidamente a mesma situação.
Resumidamente, um algoritmo é uma espécie de sequência de instruções definidas, tal como uma receita bem detalhada e minuciosa. O algoritmo genético, um tipo de algoritmo evolutivo, processa estruturas representativas de soluções de um determinado problema. As qualidades dessas soluções são avaliadas em função da otimização da resolução do problema. Geralmente, as estruturas mais adaptadas (com soluções melhor avaliadas) são selecionadas e reproduzidas. Um processo de mutação altera a formação das estruturas, mantendo certa variedade em novas gerações de soluções. A reprodução, então, é realizada até que um conjunto de soluções satisfatórias seja encontrado. Basicamente, é um processo probabilístico, não determinístico. Mais compatível com as demandas atuais.
Os algoritmos evolutivos já são empregados em sistemas de logística e distribuição, vigilância e monitoramento, sensoriamento remoto, na quebra de códigos criptografados e até mesmo na limpeza de ambientes e sistemas artificiais de criatividade.
O que assistimos, guardadas as devidas proporções, é justamente o emprego na computação da lógica das forças encontradas na natureza. Desse modo, a estrutura (método) dos processos de design, organização e construção de respostas ótimas a problemas enfrentados por organismos vivos são aplicados na resolução de problemas de outras ordens. É interessante observar como um processo natural, tão antigo, no mínimo, quanto a própria vida, possa lançar luz a problemáticas atuais no campo da informática.
Enfim, o entendimento dos processos naturais pode contribuir para a resolução de determinados problemas em campos diversos. Assim, aplicamos em sistemas artificiais parte daquilo que nos faz humanos. O que tornam indeléveis os traços de nossa natureza naquilo que construímos. Desse modo, parece que de certa forma aproximamos nossas construções tecnológicas para um grau de complexidade de algo que nem está totalmente desvendado: nós mesmos.
Referências – para quem queira saber mais sobre este assunto:
Bussab, V. S. R.; Ribeiro, F. J. L. (1998). Biologicamente cultural. In: L. de Souza, M. F. Q. de Freitas; M. M. P. Rodrigues (Org.). Psicologia: reflexões impertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Dennett, D. (1998). C. A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida. Rio de Janeiro: Rocco.
Meyer, D. & El-hani, C. N. (2005). Evolução: o sentido da biologia. São Paulo: Unesp.
Pinker, S. (1998). Como a mente funciona. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Pinker, S. (2004). Tabula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras.
Vargas, E. T. (2005). Uma proposta de relé digital baseado em algoritmos genéticos. Dissertação de Mestrado, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos.
Von Zuben, F. J. (2007). Computação evolutiva: síntese de processos evolutivos em computador.