por Monica Aiub
No artigo “Somos um ou vários?” (clique aqui), abordei a questão da multiplicidade de nossas formas de vida, os nossos *devires. Recebi algumas questões a partir do citado artigo:
Se somos vários, como fica nossa identidade? Como esses vários são constituídos? A partir de nós mesmos, a partir de nossas experiências ou a partir dos outros? O que consideramos nosso, será mesmo nosso ou traçado em nós pela cultura, pela educação que recebemos? É possível falar de um “eu”?
Algumas dessas questões já foram abordadas no próprio texto, no qual fiz uso do conceito de Rizoma, proposto por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs. Mas voltemos ao assunto, agora por outro caminho: como nos constituímos diante de nossos relacionamentos?
No consultório, verifico tanto a multiplicidade quanto a unicidade entre os modos de ser. É possível encontrar, inclusive, ambos os aspectos em uma única pessoa, ainda que isso pareça ser contraditório. Explicando melhor: é possível que alguém seja múltiplo no que se refere a Papéis Existenciais, mas seja uno no que se refere a valores. Ou ainda que seja múltiplo numa circunstância e uno em outra. Que seja uno com relação a uma pessoa ou instituição e múltiplo com relação a outra pessoa ou instituição. Há quem de fato seja uno em todos os aspectos visitados, assim como é possível ser múltiplo, em todos os sentidos.
Identificamos, por vezes, como nos modificamos diante de certas interseções. Percebemos, outras vezes, o quanto de um “outro” ficou em nós, simplesmente por termos nos relacionado com ele durante um tempo. Desconhecemos, em grande parte, o quanto de nós ficou em outros, cujas vidas cruzaram-se com a nossa.
Obviamente, há pessoas mais permeáveis e outras menos permeáveis a mudanças. Há aquelas que necessitam de choques nas relações para que se movimentem existencialmente, há as que necessitam de acolhida. Outras precisam de proximidade, enquanto algumas só se movimentam com o devido distanciamento. Mas, é possível passar pela vida sem incorporar elementos advindos da existência alheia?
Seres coletores, amor e natureza humana
Diz Humberto Maturana que somos, naturalmente, seres coletores. Ele critica a idéia de sermos seres cuja natureza é de ambição, de competição. Defende que, se assim fosse, teríamos garras e presas. Demonstra, ainda, o quanto nos contentamos e sentimos prazer em nossa coleta contemporânea nos supermercados. Segundo ele, somos seres cuja natureza é o amor. “O amor é a emoção que constitui as ações de aceitar o outro como um legítimo outro na convivência. Portanto, amar é abrir um espaço de interações recorrentes com o outro, no qual a sua presença é legítima, sem exigências”(MATURANA, 2005: 67).
É assim que, segundo ele, nos constituímos, nos tornamos o que somos, nos relacionando, amorosamente, com o outro. Ele não nega a existência de relações de competitividade, guiadas pela ambição, mas demonstra que essas são construções culturais, diferentemente do amor que, segundo ele, é biológico. Seríamos seres coletores de amor?
Paula e Bebeto: “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar…”
Poderíamos discorrer sobre diferentes formas de amor: o amor philia (amigo), o amor eros (erótico), o amor agape(incondicional)… ou considerar, como na canção de Milton Nascimento e Caetano Veloso, Paula e Bebeto: “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar…” . E nessas tantas e diferentes maneiras de amor, nos constituímos por meio das interações com o outro.
Diz ainda Maturana: “somos como somos em congruência com nosso meio e (…) nosso meio é em congruência conosco, e quando esta congruência se perde, não somos mais”.
Consideremos o meio, não apenas como um ambiente físico, natural, mas também como um ambiente cultural, histórico, composto por relações com outras pessoas. Se “somos como somos em congruência com o outro”, então somos a partir dele e ele é a partir de nós.
Se a constituição de nosso “eu” se dá da forma como descreve Maturana, então os vários que somos são constituídos nas relações que estabelecemos com o outro, com o mundo, e até como nossos outros eus, nossos próprios devires. Ou não poderíamos considerar um “outro eu” como um “outro” com o qual nos relacionamos, amamos, e nos constituímos? Amor próprio? Amor de si? Seria isso um individualismo egocêntrico, ou seria um movimento inversivo (no sentido da espacialidade do corpo próprio – (clique aqui) capaz de provocar uma construção existencial?
Mas o sentido “esvaziado”, das diferentes formas de amor, confunde amor com submissão, com dependência, com constituir-se no outro, tal e qual o outro. Muitos falam de amor buscando um espelho no outro, muitos consideram amor quando o outro se transmuta em tudo aquilo que sonham. Outros tentam ser o espelho do amado, tentam ser a sombra da existência de um ser que admiram, e que, portanto, desejam possuir. Mas… não é o amor aceitar a legitimidade do outro sem exigências? Ou construímos um amor, culturalmente, que estabelece, em suas formas, hierarquias, papéis sociais, medidas, preços, relações de consumo e de poder?
Amor e destruição
Quando você diz a alguém: “Amo você!”, o que isso significa? E como significa quando alguém lhe declara amor? Há uma distinção entre amor e distúrbios afetivos capazes de gerar sofrimento e morte? Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Madame Butterfly... e tantas outras histórias trágicas de um amor que leva à destruição. Essa destruição poderia ser considerada, também, como uma forma de constituir-se a si mesmo?
Muitos são os partilhantes (pacientes) que procuram o consultório de filosofia clínica por causa de um grande amor. Um grande amor não correspondido, um grande amor destruído, um incomensurável amor que provoca modificações em si mesmo. E o mundo parece transbordar, e o eu que sempre lhe habitou não cabe mais na antiga casa, que não é mais a mesma. Agora, diante da experiência do outro, é preciso modificar, remodelar, remodular, transformar, transmutar…
É preciso compreender-se a si mesmo após e para além da experiência do outro, para além do amor, constituindo, com os elementos coletados, uma nova forma de vida, com novos caminhos, novos espaços existenciais. Para alguns, novos caminhos, raras belezas. Para outros, revisitar antigas moradas, trilhar os mesmos caminhos e… habitar novamente os mesmos espaços, gerando, a partir deles, seus devires.
Dos devires, dos movimentos existenciais, novas formas de vida, novos e inesperados “eus”. Seriam eles possíveis se nos relacionássemos com o outro como nos relacionamos com um espelho? Se exigíssemos do outro que refletisse nossa forma de vida, teríamos a possibilidade do encontro com outros modos de ser? E se nos submetermos à forma de vida do outro, não propiciaríamos um empobrecimento de nosso próprio eu e, conseqüentemente, um empobrecimento, ainda maior, do outro?
O temor de “perder-se de si mesmo” diante do outro não seria equivalente à aceitação de uma única forma de vida possível para cada um de nós? O perder-se pode ser a grande possibilidade de encontrar um novo caminho, enquanto o constante controle pode ser, exatamente, a forma de perder-se de si, de estagnar o movimento da vida, de artificializar a beleza da existência. O quanto de você está no outro e o quanto do outro existe em você? Ainda assim, é possível falar de um “ser si mesmo”?
*devir: vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir (Fonte: Dicionário Houaiss)
Referências bibliográficas:
MATURANA, H. Emoções e Linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 2005