Entrevista: redes sociais sob um olhar sensível

Com qual lente você realmente se vê? Você se compara, se edita, se consome em um modo de vida idealizado e entorpecido por um feed sem fim? Como surfar nessa tênue fronteira entre o eu real e o eu idealizado?

Nesta entrevista realizada para o Vya Estelar, a filósofa e professora Juliana Vannuchi conversa com a psicanalista clínica Natália Amanda.

Com um olhar crítico e sensível, Natália analisa os impactos das redes sociais na saúde mental em questões como ansiedade, compulsão, escapismo. Ela ressalta o sofrimento da mulher relacionado à autoimagem e autoestima, intensificado por padrões de beleza e pela chamada “dismorfia do Snapchat”. Amanda discute esse modo de viver idealizado, o constante processo de comparação com o outro e o papel dos pais frente à hiperconectividade dos filhos.

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A psicanalista propõe uma convivência mais consciente com as redes, para que você não seja engolido por esse espelho distorcido e amplificado — uma lente gigante que te desconecta, pouco a pouco, do que é real.

Ainda assim, ela ressalta que, quando usadas com consciência, as redes sociais podem ser excelentes canais de conexão, expressão e transformação; especialmente por lhe aproximar de pessoas que ressoam com seus valores. É possível, segundo ela, fazer escolhas mais saudáveis nesse mundo digital.

Por fim, ela compartilha dicas práticas para você diminuir seu tempo de uso das redes e se desvincular, ao menos em parte, da dependência do celular.

Natália Amanda: redes sociais reforçam uma visão de mundo rígida e binária

Natalia é professora de yoga e pesquisadora de práticas integrativas na saúde mental, possui formação sólida em psicanálise contemporânea e é pós-graduanda em Saúde e Práticas Integrativas pela PUC-SP.

Fundadora da clínica VitalizArte, a psicanalista desenvolve um trabalho que integra escuta profunda, consciência corporal e poesia como ferramentas de transformação, promovendo autonomia, sentido e bem-estar às pessoas que acompanham seu trabalho.

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Juliana Vannucchi – Como podemos dominar o uso das redes sociais sem sermos dominados por elas?

Natália Amanda – Essa talvez seja uma das perguntas mais relevantes do nosso tempo, especialmente diante da crescente fusão entre o ser humano e a tecnologia. Hoje, muitas pessoas vivem seus conflitos, desejos, experiências e até suas versões mais idealizadas dentro das redes sociais — sejam elas reais ou fictícias.

Embora existam recursos desenvolvidos pelas grandes empresas de tecnologia para auxiliar na regulação do tempo de uso, acredito que essa não seja a verdadeira questão que enfrentamos. Há uma negligência evidente por parte dessas organizações em relação à vigilância, regulamentação e fiscalização. Não se trata de defender um espaço social totalmente vigiado, mas de reconhecer que as redes foram projetadas para capturar o tempo e a atenção dos indivíduos, muitas vezes de forma quase compulsiva.

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Esse poder, no entanto, não está nas mãos de quem simplesmente abre uma timeline. Por isso, uma saída possível é reavaliar a própria vida: nossas interações, interesses, saúde emocional e física. Por exemplo, se alguém cultiva amizades presenciais, tem hobbies, aprecia arte, música, natureza — é natural que passe a valorizar mais esses momentos do que o tempo gasto rolando feeds infinitos.

Fazer da nossa própria vida algo com sentidos e significados que não cabem somente numa tela de feed, ou em relações que não se sustentam apenas em instantes digitais, já é um bom começo.

Criar uma vida interessante o suficiente para que o virtual seja apenas um recurso — e não um refúgio. Porque dominar as redes também é, no fundo, encontrar morada em si.

Juliana Vannucchi – Em quais aspectos o uso recorrente dessas redes pode prejudicar nossa saúde mental?

Natália Amanda – Inúmeros estudos têm evidenciado o impacto negativo do uso recorrente das redes sociais sobre a saúde mental. Entre os transtornos mais observados estão o aumento da ansiedade, a compulsão por consumo de conteúdo, dificuldades nos vínculos interpessoais, isolamento social, quadros depressivos e até fenômenos mais recentes, como a chamada “dismorfia do Snapchat” — quando a pessoa passa a desejar se parecer com versões de si mesma editadas por filtros.

Além disso, o excesso de comparação com vidas idealizadas, a exposição constante a estímulos rápidos e a busca por validação em curtidas ou comentários podem gerar um desgaste emocional silencioso, mas profundo. Muitas vezes, a pessoa sequer percebe o quanto está sendo afetada — até que o vazio, a insatisfação ou a exaustão psíquica se tornam mais evidentes.

As redes sociais, embora tenham um potencial enorme de conexão e expressão, também podem funcionar como espelhos distorcidos que alimentam fantasias, inseguranças e uma desconexão progressiva do real — de si mesmo, do outro e do tempo interno.

Juliana Vannucchi – Como podemos conviver de maneira saudável com as redes? Poderia nos citar alguns de seus aspectos positivos?

Natália Amanda – Acredito que esse texto, inclusive, estará sendo lido por meio de uma rede social, então… já começamos imersos na própria questão.

As redes sociais, quando usadas com consciência, podem ser potentes instrumentos de conexão, expressão e transformação. Podemos encontrar pessoas que ressoam com nossas ideias, valores e causas — o que nem sempre acontece com a mesma intensidade em nosso convívio fora do virtual. Muitas dessas conexões, inclusive, atravessam a tela e passam a fazer parte da vida real, de modo significativo.

Além disso, embora muito se fale sobre as bolhas digitais, é importante lembrar que o contato com diferentes perspectivas também acontece nas redes. Há quem se fortaleça em suas ideias, mas também quem se transforme ao ter acesso a outros modos de pensar e existir.

Convivência saudável, portanto, não é sobre negar as redes, mas sobre fazer escolhas conscientes dentro delas. Saber o que buscamos, o que alimentamos e o que deixamos nos afetar. Usar as redes para ampliar horizontes — e não para nos perder em labirintos.

Sofrimento da mulher 

Juliana Vannucchi – Você acredita que, de modo geral, as redes sociais tendem a afetar mais as mulheres do que os homens, em função do recorrente bombardeio de informações sobre padrão de beleza?

Natália Amanda – Sem dúvidas, infelizmente sim. Ainda vivemos em uma sociedade que explora os corpos das mulheres como mercadoria — e isso se reflete diretamente nas redes sociais. O bombardeio constante de imagens femininas, muitas vezes altamente editadas e irreais, cria um terreno fértil para comparações destrutivas.

Essa exposição frequente a padrões de beleza inatingíveis pode gerar um ciclo de sofrimento: mulheres se comparam, se sentem inadequadas e, muitas vezes, entram numa busca desenfreada por um ideal estético que simplesmente não existe. É um sofrimento silencioso que se alastra e se camufla sob filtros, curtidas e validações externas.

As redes sociais, nesse aspecto, funcionam como espelhos distorcidos que reforçam estereótipos de gênero, controlam desejos e moldam inseguranças. E, embora homens também sejam impactados, o peso recai de forma muito mais cruel e histórica sobre as mulheres.

Juliana Vannucchi – Geralmente, os pais têm uma imensa preocupação em relação ao tempo que seus filhos passam nas redes sociais ou mesmo nos aparelhos celulares. Poderia citar alguma medidas que os pais podem tomar em relação a isso? As crianças e jovens costumam ter uma certa resistência em relação a regras, né? Parece ser uma questão delicada…

Natália Amanda – Com certeza é uma questão delicada. Eu tenho dois filhos, um de treze anos e outro de doze, e posso dizer que sinto isso na pele. Às vezes, me sinto fraca diante do poder que essas grandes tecnologias exercem. Mas é justamente nesse ponto de vulnerabilidade que a força precisa acontecer — mesmo que de forma cansativa e cheia de desafios.

Desde o primeiro momento em que meus filhos tiveram acesso a aparelhos e redes, utilizei os recursos de controle e monitoramento disponibilizados pelas próprias plataformas. Confesso que é difícil manter a constância, mas hoje me sinto satisfeita com o resultado. Percebo que, quando essa orientação não acontece desde o início, torna-se muito mais difícil estabelecer limites depois.

E não se trata de proibir ou colocar os filhos numa bolha — isso, além de inviável, pode ser até prejudicial. Mas é essencial acompanhar nossas crianças e adolescentes nas “ruas da virtualidade”, porque os riscos e perigos são tão reais quanto os da vida fora da tela — só que mais silenciosos.

Mais uma vez, voltamos à pergunta essencial: qual é a qualidade de vida que estamos oferecendo fora do mundo virtual? Quais são as interações que nossos filhos têm com o mundo real — com a natureza, com os amigos, com a arte, com o tempo livre criativo?

Às vezes, estamos fisicamente ao lado dos nossos filhos, mas há entre nós uma barreira invisível de mundos diferentes. E precisamos lembrar: se até os adultos têm dificuldade em regular o uso das redes, o que dirá os menores?

Série Adolescência  

Juliana Vannucchi – Em quais aspectos a série Adolescência pode servir como alerta em relação aos perigos gerados pelas redes sociais?

A série Adolescência é necessária nos tempos de hoje. Ela funciona, sim, como um alerta. Mostra que mesmo pais bem-intencionados e filhos aparentemente “comuns” estão sujeitos a vivenciar uma tragédia — como a que é retratada na narrativa.

Um dos pontos mais fortes da série é a evidência da ruptura de linguagem entre as gerações. E a linguagem é muito mais do que fala: ela é também gesto, escuta, presença. É por meio dela que vínculos e afetos são construídos. Na série, vemos uma família que mora sob o mesmo teto, mas vive em mundos diferentes — justamente pela ausência de uma linguagem comum.

Além disso, os espaços de vivência também são distintos. Em muitos momentos, o adolescente está sozinho ou cercado de amigos que compartilham das mesmas circunstâncias — muitas vezes instigadoras ou destrutivas. E algo essencial que a série escancara é que, na maior parte das vezes, o adolescente não verbaliza suas dores de forma direta. Seria ótimo se fosse assim, mas não é. As dores aparecem em sutilezas: no isolamento, na mudança de comportamento, no silenciamento.

Isso nos leva a uma questão urgente: precisamos redefinir o que entendemos por segurança nos tempos atuais. Estar atento não é mais apenas saber onde o filho está fisicamente, mas perceber onde ele habita emocionalmente — e virtualmente.

A série nos convida a mudar o olhar. A termos uma escuta mais sutil, sensível e aberta aos novos modos de existir e se comunicar. Porque fugir disso, hoje, talvez seja o maior perigo.

Ódio nas redes

Juliana Vannucchi – Por que as redes sociais acabam sendo fonte de discurso de ódio? Em sua concepção, a partir de suas próprias experiências, acredite que há mais ódio do que amor nas redes?

Natália Amanda –  Há, sim, algo como uma “audiência do ódio” — e isso não é novidade. Sabemos que, muitas vezes, conteúdos violentos, provocativos ou polêmicos ganham mais visibilidade e engajamento. Alguns criadores se aproveitam disso deliberadamente, como uma forma de atrair atenção a qualquer custo.

Além disso, as redes sociais favorecem a criação de bolhas, que tendem a reforçar visões de mundo rígidas e binárias. Isso alimenta a repulsa por aquilo que é diferente e dificulta o diálogo. O pensamento fica empobrecido, sem espaço para síntese ou elaboração. A contrariedade vira hostilidade, e o debate, um campo de guerra.

Outro aspecto preocupante é que qualquer pessoa pode ganhar voz nas redes — inclusive aquelas que propagam discursos extremistas e sem fundamentos. Muitas vezes, essas falas se tornam populares justamente por instrumentalizarem a destrutividade humana a serviço de interesses maiores: políticos, econômicos, ideológicos. As redes não apenas amplificam essas expressões como, em muitos casos, são terreno fértil para sua criação.

E há ainda o fator da impunidade: nas redes, muitas pessoas se sentem autorizadas a expressar ódio sem serem afetadas, podendo desaparecer a qualquer momento. Isso favorece um tipo de violência simbólica impessoal e contínua.

Mas, apesar de tudo isso, não acredito que haja mais ódio do que amor nas redes, ou vice-versa. O que existe é um uso sistemático do ódio como ferramenta de poder e manipulação. Fala mais alto, ocupa mais espaço — mas não significa que seja o que mais existe.

Pessoalmente, tenho vivido mais experiências de afeto, troca e construção nas redes. Acredito que, quando administradas com consciência e intenção, elas ainda podem ser espaços de encontros transformadores. Mas é preciso, sim, repensar seu uso — e também sua regulamentação. Talvez, no futuro, tenhamos que correr atrás do prejuízo que hoje fingimos não ver.

Juliana Vannucchi – Clinicamente falando, quais você observa que são os maiores problemas que as redes sociais geram?

Redes sociais escancaram a verdade sobre as dores humanas, sensações de vazio se intensificam

Natália Amanda – Clinicamente, percebo que as redes sociais escancaram a verdade sobre as dores humanas. Elas mostram, sem muito disfarce, que nossa civilização talvez não seja tão civilizada assim. Muitos comportamentos expressos nas redes se assemelham ao que veríamos em uma selva — onde impera o instinto, o impulso e a falta de elaboração psíquica.

As redes, na verdade, não criam os problemas; elas amplificam questões que já existiam. O que vemos hoje são sintomas mais visíveis e potencializados. Relações consigo mesmo e com o outro se tornam mais frágeis. A qualidade de vida é comprometida. E, em muitos casos, os sofrimentos psíquicos, como ansiedade, depressão, compulsões e sensação de vazio, se intensificam.

Feed: rolagem entorpecente e infinita 

O que mais me chama atenção, no entanto, é a imaturidade emocional que muitos acabam cultivando — não por escolha consciente, mas por falta de enfrentamento. Em vez de lidarem com as frustrações e os vazios inevitáveis da existência, as pessoas buscam refúgio nas redes. Usam a rolagem infinita como um tipo de entorpecente psíquico, um modo de evitar o encontro com a falta.

E isso, aos poucos, vai produzindo uma relação cada vez mais empobrecida com a vida. Uma fuga constante da dor, do tédio, da espera, do silêncio — elementos tão importantes para o amadurecimento. A rede, nesse caso, se torna não apenas uma distração, mas um desvio contínuo do processo de crescimento.

Juliana Vannucchi – Para encerrarmos, gostaria que desse algumas dicas para os leitores que almejam diminuir o tempo de uso das redes e se desvincular um pouco de seus aparelhos celulares.

Natália Amanda – Como diria um dos meus filósofos preferidos, em um conto que fala sobre a felicidade: devemos cultivar nosso jardim — Voltaire.

Acredito que o primeiro passo seja esse: repensar como queremos viver. Olhar para a nossa vida com mais presença, refletir sobre o que queremos cultivar — nossas relações, nossas aspirações, nossos prazeres, nossa maneira de estar no mundo. Proporcionar a nós mesmos experiências com sentido, que vão além do imediatismo das telas.

Mais do que controlar o tempo de uso, é sobre tornar-se mais consciente. Ser mais crítico, menos sugestionável e menos manipulado por conteúdos que, muitas vezes, são sazonais ou fúteis — e que engajam apenas uma parte rasa da nossa mente, nos afastando do que realmente importa.

Também é preciso reaprender a suportar o vazio. Porque é justamente dali, do desconforto, da ausência, que podem surgir transformações verdadeiras. A insatisfação, quando acolhida e elaborada, pode ser o terreno fértil de algo novo — algo com significado. As redes sociais devem nos servir quando fizerem sentido — e não o contrário. Elas foram criadas como ferramentas, mas cabe a nós não nos transformarmos em extensões delas.

Juliana Vannucchi é licenciada em Filosofia e atualmente é professora, palestrante. É editora-chefe do Acervo Filosófico. Graduada em Comunicação Social e pós-graduanda na área da Educação.