por Regina Wielenska
Há algum tempo discuti aqui quais seriam as condições favorecedoras do comportamento de gostar de ler (clique aqui e leia). Hoje vou percorrer uma estrada próxima daquela: como se aprende a escrever bem? Em primeiro lugar, o que é um texto de qualidade?
Há muitos anos me diverti lendo uma crônica de Fernando Sabino. Nela o autor relatava o sofrimento que lhe acometera ao ter que escrever um telegrama de pêsames. Um aparte histórico: o episódio descrito se passava numa época anterior à invenção de computadores e celulares. Naquela época, impossibilitada de comparecer a um velório e sepultamento, uma pessoa deveria se solidarizar com a família enlutada ao menos por meio de um telegrama. Enfim, retomando a história, lá estava Fernando Sabino há minutos em luta com as palavras. Nenhum texto lhe parecia suficientemente adequado para a expressão do seu pesar. A empregada testemunha o patrão empacado à mesa, brigando com as palavras, caneta e papel. Ou máquina de escrever, já não me lembro mais. Surpresa com tal embatucamento linguístico, ela lhe responde na lata: “Uai, por que o Senhor não diz tal e tal coisa?”. Era o telegrama perfeito, imediatamente ditado pela assistente doméstica ao patrão, famoso literato.
Comunicar-se por escrito: o que caracteriza um bom texto?
Uma boa comunicação talvez seja isso: saber usar a palavra certa na hora exata, de modo que sejamos entendidos, exatamente como gostaríamos, por quem nos lê ou escuta. Comunicar-se bem por escrito não requer apenas domínio das palavras e conhecimento da língua portuguesa. Essa questão é apenas uma parcela dos quesitos a se considerar. Sim, conhecer muitas palavras e seus precisos significados nos propicia uma variabilidade na escrita, temos mais jogo de cintura. Outra questão formal é: como as palavras se entrelaçam, formando uma tapeçaria de letras? Dispor das regras da gramática com segurança nos assegura uma urdidura de qualidade, capaz de converter um arranjo de palavras num produto de qualidade, capaz de enredar o leitor.
O leitor: parte importante da nossa escrita
Dominar a o idioma é mesmo um bom começo, mas tal expressão é controversa e engloba perspectivas várias. Vou falar disso um pouco mais adiante. Mas agora quero destacar a importância daquele a quem dirigimos nossas palavras, o leitor.
Ontem um programa de TV discutia a péssima qualidade dos manuais que acompanham os telefones celulares. Instruções confusas, termos técnicos não definidos, lacunas de informação, traduções mal feitas. Era esse o panorama da maioria dos manuais avaliados por um órgão de defesa do consumidor e apresentados na matéria jornalística. O manual cumpre a lei, mas sua redação não ajuda em nada o usuário que quer explorar melhor os recursos do aparelho comprado. Primeiro precisamos definir qual o objetivo principal de nosso texto. No caso do celular, o manual deveria ser capaz de tornar claro ao consumidor, mesmo que fosse um indivíduo pouco afeito às tecnologias digitais, quais as principais características do equipamento, e como proceder ao seu uso e manutenção correta.
Por outro lado, quem escreve para pedir perdão a alguém precisa escolher argumentos a favor da reaproximação. Há lógica entre eles?
Os sentimentos estão sendo corretamente representados pelas palavras?
Corre-se o risco de ofender ainda mais a outra pessoa, dependendo do que se escrever. Ou, pelo contrário, palavras bem colocadas, seguidas por ações do mesmo naipe, operam mudanças dramáticas num relacionamento estremecido.
Um candidato em um concurso público para ingresso na magistratura tem seu preparo medido ao longo de avaliações sucessivas. Há provas escritas, nas quais mensuram seu saber jurídico e capacidade de discernimento dos aspectos complexos de temas relacionados ao campo das leis. Temos aqui uma situação distinta das anteriores. Aqui, precisão terminológica e conceitual, sólida formação acadêmica, rigor no uso na norma culta da língua portuguesa, e adequada formulação de um raciocínio, tudo conflui para uma aprovação.
Um escritor que publica para crianças menores precisa ajustar sua escrita às características de seu público-alvo. Pouco texto, palavras de compreensão fácil, ilustrações bacanas, ideias criativas, estímulos à imaginação infantil, tudo importa quando se escreve para quem mal domina o universo das letras. Na série de livros Desventuras em Série, escrita por Daniel Handler, sob o pseudônimo de Lemony Snicket, palavras mais difíceis são utilizadas sem hesitação, e um artifício literário foi colocar nos lábios de um dos personagens uma explicação, bem curta e clara, sobre o significado do que foi dito antes. Escrever para crianças exige respeito redobrado ao leitor, pessoa em formação, felizmente aberta às influências de um bom texto.
Em suma, para cada propósito e tipo de leitor, uma escrita provavelmente será mais ajustada. E o que mais é preciso levar em conta para se escrever bem?
Treinamento e feedback: o empenho em praticar e suas conseqüências
Ninguém nasce pronto para andar e falar. Muito menos para escrever com facilidade. Os professores, desde o ensino fundamental, nem sempre estão preparados para ensinar aos alunos a escrita funcional, a que lhes qualifica como cidadãos capazes de uma expressão escrita vigorosa, clara e fluente, transformadora do mundo.
Escrever é comportamento a ser incentivado, e aprimorado pela prática e feedback constantes. Um professor de matemática que examine apenas os cálculos e teoremas de seus alunos talvez desperdice uma ocasião de aprimorar a expressão escrita dos alunos. Ajuda muito um pai agradecer à filha por ela ter deixado um bilhete que lhe foi importante e, de quebra, salientar a clareza e elogiar sua caligrafia. Nos Estados Unidos e Brasil há concursos de soletração, mas são escassas as oficinas de produção de texto, interessantes experiências didáticas nas quais aficionados pela escrita comentam os trabalhos uns dos outros, em termos de sua forma e conteúdo.
Aprender a andar exige esforço, e inequivocamente amplia nosso raio de ação no mundo. Escrever é parecido, é um comportamento que se estabelece como importante para o indivíduo quando consequências positivas decorrem do ato de encadear ideias, ajustá-las ao leitor e converter palavras num texto coerente, compatível com os propósitos de quem o escreve. Escrevemos para declarar nosso amor, prescrever uma medicação, fazer a lista de compras, passar num concurso, redigir uma sentença, escrever uma coluna sobre comportamento num site na web, pedir demissão, deixar um recado sob a porta do vizinho.
Quanto mais praticarmos e formos seletivamente consequenciados, mais poderemos nos aprimorar. Ler muito, de tudo um pouco, nos ajuda a escrever de modo mais flexível, seguindo códigos linguísticos sintonizados a contextos diversos, tal como o rico mundo em que vivemos. Em centros comunitários espalhados por todo o Brasil florescem algumas iniciativas nas quais pessoas de todas as idades se reúnem para ler suas poesias, apresentar suas crônicas. São pessoas que buscam a interlocução, sua expressão genuína a ser validada pelos ouvintes atentos. Procure seu grupo, ou funde o seu. Ler e escrever: dois tesouros do repertório comportamental humano.