por Roberto Goldkorn
Na Bíblia, a cidade de Jericó é conquistada pelo patriarca Josué que soa suas trombetas e derruba as paredes solidamente construídas. Não importa se ele realmente tinha uma arma sônica dada por extraterrestres ou se tudo não passa de uma figura de linguagem exagerada e aumentada ao longo do tempo. O que importa é que Jericó foi talvez a primeira grande cidade organizada do mundo, e cerca de 6000 a.C, já era civilizada e abrigava, segundo pesquisadores, cerca de 3 a 5 mil pessoas dentro de suas altas muralhas.
Mesmo assim foi conquistada, destruída e reconstruída dezesseis vezes! Hoje as escavações nos mostram as suas diversas camadas, cada uma delas revelando civilizações, avanços, conquistas, sonhos, morte e renascimento.
Nós somos exatamente assim como Jericó!
Nossa mente em camadas virtuais (e fisiológicas) mostra a evolução do nosso caminhar pelo planeta. Dentro de nossa construção mental existe o primitivo; o sujeito que inventou a roda; o que começou a domesticar animais e usá-los; o que temia os trovões; o que fabricou as primeiras ferramentas; o que inventou a escrita, o computador, mas também aqueles que chacinavam, saqueavam, estupravam e faziam sacrifícios humanos. O primitivo e as camadas que ainda virão, já existem num plano arquetípico.
A diferença para Jericó é que caminhamos, progredimos, ainda carregando todo esse passado em nossas estruturas, e elas estão lá, mortas? Não, apenas descansando, como um vulcão que pode até parecer uma montanha de longe, mas como diria meu antigo professor de literatura – tem potencial.
As nossas camadas arqueológicas estão ativas, por isso as vezes irrompem ladeira acima furando os estratos mais civilizados e desaguam na nossa modernidade trazendo o primitivo que existe ainda em nós.
Semana passada um policial pegou um sujeito que estava levando uma menina de sete anos para um matagal para estuprá-la. Surpresa, ele era o pai dela. Pai sim, não o padrasto, o pai biológico. Talvez isso fosse mais ou menos comum cerca de 12 a 15 mil anos onde os valores morais e certos tabus não tinham ainda sido estabelecidos. Mas essa camada profunda soergueu-se dos abismos do sujeito e veio à tona.
Quando um bando de adolescentes se junta para atacar pessoas em praias ou até em shoppings, estão encenando um programa primitivo, que até hoje é realizado por chimpanzés jovens que fazem esses raids só para tocar o terror e acabam sempre deixando vítimas nos bandos rivais.
Estamos vivendo a camada mais jovem de nossa arqueologia. Em termos cerebrais, estamos sob o reinado do córtex cerebral, sabidamente a evolução mais recente da arquitetura do nosso cérebro, mesmo assim o páleo (antigo) cérebro ou cérebro réptil primitivo ainda dá as cartas de vez em sempre.
No momento atual, estamos vendo um trágico deslocamento de populações provocado por guerras cruentas, miséria e perseguições. Isso era muito comum no passado, invasões, massacres, fuga de populações inteiras, novas colonizações, redesenhando mapas e mudando fronteiras territoriais; isso vem acontecendo desde 12 mil a.C. O páleo cérebro grupal ainda está ativo!
Cada um de nós por mais civilizado, culto, educado que seja, ainda leva junto camadas cavernosas que, mesmo bem por baixo, podem entrar em erupção cutucadas por fatores externos ou até mesmo internos.
Engana-se quem pensa que o passado está morto dentro de nós, ele está latente, e presente o tempo todo como, digamos, "observador". Não podemos descartar a possibilidade de regredirmos a um estágio primitivo se algumas condições extremas nos forem impostas. Mas nem sempre essa regressão é ruim. Às vezes só o primitivo que habita em nós é capaz de sobreviver às provações graves a que podemos ser submetidos. Por isso ainda estamos aqui para contar a história.
Mas em termos da normalidade, manter o primitivo em seu lugar, é trabalho necessário e nada fácil. Estamos a todo instante sendo cutucados pelos estímulos para trazer à tona essas camadas arqueológicas. Emoções não lapidadas, instintuais fazem parte de nosso acervo, elas não podem ser extirpadas, pode ser que um dia ainda possam ser convocadas a assumir a dianteira. Imaginem se um houver um pulso solar eletromagnético que derrube toda a fonte de energia elétrica do planeta: sem luz elétrica, sem computadores, sem elevadores, voltamos imediatamente no tempo; talvez o nosso homem das cavernas interno possa realmente ser convocado a nos acudir para que possamos sobreviver novamente.
Enquanto isso não acontece, a atenção aos nossos programas primitivos deve ser constante, nada mais desastroso para nós e para a sociedade quando numa situação de "normalidade" social esses programas saem do buraco para se tornarem atores principais, cortando cabeças de quem pensa diferente ou impondo pela espada suas crenças.
De vez em quando na guerra do trânsito, sinto que o meu Hulk interior ameaça sair para devastar os "inimigos", imediatamente respiro, jogo a minha luz de consciência sobre ele e o levo de volta às camadas mais profundas da minha Jericó. Nesse momento lembro do lema dos escoteiros e digo "sempre alerta" para me lembrar que sou também o Hulk, sou o que fui e com sorte o que serei.