Por Angelina Garcia
Difícil sobrar-lhe um tempo, pois a jornada dupla não poupava sequer seus finais de semana: colocar ordem na casa, nas roupas das crianças, fazer supermercado, visitar os avós. Aquele poderia se dar de presente, já que as crianças viajariam com o pai. Nada de problemas, também esses ficariam em repouso: o chefe ranzinza, a falta de dinheiro, a doença do pai, a pensão que o ex-marido vivia adiando. Cândida já pensava no filme que veria, no livro que começaria a ler, ou reler, nas pernas para cima no sofá. Assustou-se quando o telefone tocou. Era Lucrécia que, tão decidida, dizia-se morrendo de saudades. Viria, então, passar o final de semana com ela.
Gostava da amiga que ficara na cidade onde morou, embora conhecesse bem seu hábito de desassossegar os outros. Nem assim ganhou coragem para lhe dizer não; afinal já haviam partilhado tantas coisas, as piores e as melhores. Como lhe dizer que estava precisando daquele tempo só para si. Restava a esperança de que ela estivesse mudada.
– Que bom, venha sim.
Lucrécia não mudara, ao contrário, parece que o tempo só fez fortalecer seu costume de bulir com tudo, fossem os hábitos, ou os objetos da casa. Para ela, o almoço saía tarde demais, o fogão ficaria melhor do outro lado da cozinha, a cortina não combinava bem com o sofá e daí por diante. Cândida nem se incomodava mais com essas investidas, fora sempre assim; mas tocar as feridas, como quem não tem a intenção de machucar, era de matar.
Lucrécia ia devagar, pelas beiradas, buscando o ponto mais dolorido. Cândida se esgueirava de uma, ela partia para outra, até que, sem defesa, entregasse os pontos. Dessa vez encontrou a doença do senhor Manoel. Ela sabia o quanto ele era importante para a amiga. Foi tecendo devagarinho a mortalha do homem, sem piedade, até colocar Cândida, aos prantos, frente ao caixão do pai. Aí, então, condoeu-se:
– É realmente uma grande perda. Ele vai te fazer tanta falta.
O predador fareja suas vítimas; sabe quem, quando, onde e como atacar. Se ele age é porque encontra pelo caminho os desavisados, ou aqueles que, inconscientemente, estão a sua espera.
É comum procurarmos desculpas para atitudes desagradáveis das pessoas a quem queremos bem, mas é importante distinguirmos entre quem de fato quer compartilhar um problema conosco, e um outro que insiste numa conversa, mesmo sabendo que ela nos tira do prumo. A proposta deste não é solidária, é destrutiva. Seja por ingenuidade, seja por necessidade – nem sempre visível -, devemos nos perguntar a razão por que cultivamos relações assim.
Por mais querida que seja uma pessoa, e até por isso, é preciso impedi-la de nos roubar a energia, mesmo que ela não tenha consciência do que está fazendo. Se possível, dê-lhe um retorno a respeito do mal que está causando ao outro; mas se de nenhuma forma ela aceita ser questionada, o melhor é se proteger, distanciando-se internamente, se conseguir; ou recusando-se a ouvi-la. Antes pagar o preço que seguramente isto custará, do que continuar alvo do predador.