Da Redação
“A violência faz parte de uma série de práticas sociais. Ler relatos sobre agressões, semelhantes aos escritos por Fonseca, pode ser uma maneira de nos fazer experimentar a agressividade sem nos arriscarmos nas consequências da agressão na vida concreta”
Rubem Fonseca retrata violência com lirismo
Na literatura, a violência, ao contrário do que se pensa no senso comum, pode ser um objeto de atração, por vezes de maneira controversa.
“Tendemos a tratar a violência com repulsa, mas na arte ela pode ser muito sedutora”, explica o escritor Tony Monti. Ele é autor de uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP sobre a presença de assassinos e artistas nos contos do escritor mineiro Rubem Fonseca.
O estudo de doutorado Escritores e assassinos – urgência, solidão e silêncio em Rubem Fonseca, que teve a orientação do professor Vagner Camilo, abrange o período entre Lúcia McCartney, terceiro livro de Fonseca, escrito em 1967, e O Cobrador, de 1979 – inclui-se ainda no trabalho o censurado Feliz Ano Novo, de 1975.
“Deixei de lado os dois primeiros livros, Os Prisioneiros e A Coleira do Cão, por eles ainda terem um certo lirismo quando tratam de violência, e os que vieram depois de O Cobrador por terem um menor valor artístico, na minha opinião”, explica o pesquisador. Ele ressalva que há certa graduação entre os livros que abordou: “Lúcia é o livro mais experimental dos três. Fonseca inova na abordagem de temas e também no aspecto formal, como acontece normalmente em transições. Feliz Ano Novo e O Cobrador, por sua vez, apresentam já o sexo e a agressão como elementos consolidados de uma prosa”.
“Lúcia é o livro mais experimental”
Uma questão interessante levantada no trabalho de Monti é a maneira como o leitor recebe essa violência. “A violência faz parte de uma série de práticas sociais. Ler relatos sobre agressões, semelhantes aos escritos por Fonseca, pode ser uma maneira de nos fazer experimentar a agressividade sem nos arriscarmos nas consequências da agressão na vida concreta”, diz.
“Feliz Ano Novo”, de 1975, foi censurado
A partir da leitura das obras, o escritor percebeu a existência recorrente de quatro tipos de violência. Há a violência como parte da luta de classes, como acontece no conto ‘Feliz Ano Novo’, onde ladrões assaltam uma festa de Réveillon de grã-finos; a violência como forma de restituição política, como a narrada no conto ‘O Cobrador’; a violência entre organizações e pessoas, que pode ser vista em ‘O Quarto Selo’, e, por fim, a violência aparentemente gratuita, que não apresenta qualquer justificativa para acontecer, como o homem que atropela pessoas fortuitamente em ‘Passeio Noturno’.
“Em todos os casos, ela é sempre muito física e explícita, seja entre namorados, ricos e pobres ou praticada por serial killers”, pondera. Monti afirma que não se trata de uma classificação, porque não é possível restringir cada caso a um simples rótulo. “Em ‘Feliz Ano Novo’, por exemplo, roubam-se bens e comida, mas também tem o excesso: há mortes, estupros e um dos bandidos chega a defecar na cama. Não é só a luta de classes”, explica.
Os artistas aparecem na obra de Fonseca também como transgressores, o que seria de se esperar. O que é interessante, segundo conta Monti, é que alguns deles se comparam com os criminosos. “Fiquei entre artista e bandido”, diz um personagem de “Intestino Grosso”, enquanto outros se envolvem com crimes, como o pedófilo de “Pierrô da Caverna”. “Outro fator interessante é que os criminosos também se envolvem com a arte: o protagonista de ‘O Cobrador’ escrevia poemas, e em ‘Feliz Ano Novo’, há uma valorização da estética violenta, quando os ladrões acham bonito a maneira como deixam um corpo pregado na parede”, conta o escritor. “Entretanto, deixei de lado um pouco os artistas no meu trabalho. Eles são personagens menos interessantes e intensos. Embora às vezes transgressores, alguns são muito parecidos com os burgueses fúteis presentes em toda a obra de Fonseca”.
Influência
O pesquisador aponta Fonseca, nascido em 1925, em Juiz de Fora (MG), como uma importante referência para a literatura que se faz hoje no Brasil. “Ele inaugurou no Brasil um modo literário extremamente urbano e violento. Existem aqueles, como Patrícia Melo, de O Matador, que declaram essa fonte, mas uma série de outros atores têm Fonseca entre suas fontes literárias, ainda que não o declarem explicitamente”, explica Monti. Fonseca continua escrevendo, tendo recentemente lançado Axilas e outras histórias indecorosas, pela Editora Agir.
O Cobrador: “Sexo e agressão consolidado em prosa”
Imagens: 1 – Stephen Z. Todas as outras: divulgação
Fonte: Agência USP de Notícias