por Alexandre Pill – psicólogo do NPPI
A morte de Glauco e de seu filho tem suscitado inúmeras reações. Acompanhando o caso pela internet, percebo que a comoção é geral, assim como o apelo por justiça, segurança e outros sentimentos que afloram em tais situações. Além disso, inúmeras vozes tem se levantado para culpar o Santo Daime pelo ocorrido.
Lembro-me de um crime cometido no final de 2008, em que uma psicóloga foi executada ao chegar a sua casa. O inquérito aponta que o crime foi encomendado por um marido ou esposa de um(a) paciente sua, que teria responsabilizado a psicóloga pela separação do casal durante o tratamento psicoterápico.
O caso me mobilizou bastante na época, provavelmente por ter sido engendrado num ambiente que me é familiar, o da relação terapeuta-paciente. Recordo que a comoção foi grande, mas a repercussão pequena. "Ossos do ofício" era a resignada conclusão que pairava no ar.
Pergunto-me por que crimes horrendos como esses tiveram repercussões tão diferentes. Penso que há uma relação direta com o aspecto misterioso do Santo Daime versus o velho lugar conhecido do divã de Freud.
Muito se ouviu falar sobre os efeitos da ayahuasca (os relatos se polarizam: experiências celestiais ou infernais), mas pouco se sabe em termos de experiências pessoais (“eu nunca tomei, mas sei de um amigo de um amigo que…”). É uma religião recente (menos de 100 anos), sem uma liderança unânime – ao contrário, é formada por diversas linhas, cada uma com seu ritual e normas diversas. Por fim, o elemento central de todas elas é a ingestão da ayahuasca, tida por alguns como a tábua de salvação e por outros como uma droga da mesma categoria da cocaína ou heroína.
Neste sentido, o Santo Daime parece ter o aspecto de uma silhueta, com contornos pouco definidos e sem rosto – um espaço que cada um pode preencher à sua maneira… Um vasto espaço potencial.
Esse campo de potencialidades me remete a outro espaço análogo que tem servido de bode expiatório para muitas mazelas humanas – a internet. Uma rápida busca na rede aponta que "estudos comprovam que a internet": vicia mais do que crack, torna o usuário anti-social, leva à depressão, compromete a atenção dos alunos, aumenta a propensão de jovens à autolesão… E por aí vai.
Obviamente há vários estudos que investigam os aspectos positivos do uso da rede, mas o que incomoda em ambos os casos é a forma leviana como a informação é tratada – sempre de maneira conclusiva, determinante e causal.
A meu ver, o mais importante de tudo isso é que esses estudos entendem a internet como um ser animado pelo sopro divino, com vontades, manias, defeitos e caprichos, ignorando o pequeno detalhe que a internet é uma simples ferramenta nas mãos do ser humano. É ele que determinará o uso que fará da rede e projetará, inevitavelmente, muito de si nessa relação. Na minha opinião (ou melhor seria dizer "estudos comprovam que"?), a internet vem substituindo paulatinamente a televisão, configurando-se como um espelho cada vez mais abrangente de nós mesmos.
Mas se a situação pede para reconhecermos nossas falhas, é muito mais fácil apontar o dedo para nosso reflexo, algo fora de nós mesmos e urrar "foi ele" – seja a internet ou o Santo Daime. Confesso sentir um calafrio ao imaginar que posso me deparar, qualquer dia desses, com uma notícia parecida com o infame título deste artigo.