por Aurea Afonso Caetano
Há uma conversa cotidiana que acontece a cada manhã quando, ao acordar, nos olhamos no espelho. Érico Veríssimo em “Solo de Clarineta”, fala sobre o encontro diário com o amigo mais íntimo que não é senão ele mesmo visto através do espelho. O outro, do lado de lá, é aquele que o conhece melhor.
Qual a função do diálogo interno, expresso pelo encontro com o próprio reflexo no espelho?
É o que Sócrates chama de possibilidade de “dois em um” ou a capacidade de através de um desdobramento poder distanciar-se e fazer referências a si próprio, sendo dois em um falamos com nós mesmos, pensamos, julgamo-nos e nesse caminho, ouso dizer, fazemos consciência.
O encontro com o outro no espelho é tema de inúmeras obras literárias. O espelho é na verdade um fascinante artefato na medida em que nos proporciona a única maneira possível de ver nosso próprio rosto (em tempo real). Não fosse o espelho, não nos reconheceríamos. E é preciso reconhecer para saber ou para ser consciente.
Não por acaso Lacan elabora sua teoria a partir do que chamou de “Estádio do espelho” e que vários outros autores relacionam a possibilidade de reconhecimento, discriminação, com o início do processo de desenvolvimento simbólico. Descoberta da existência real de um eu que tem um lugar e uma estrutura definidos concretamente, podendo, então, a partir daí também aparecer de forma simbólica.
Veríssimo, o pai, em sua conversa diária com o outro no espelho exercita essa possibilidade de autoconhecimento. Através dele, mostra a conversa interna nesse momento polarizada através da imagem então refletida. O homem do espelho sou eu mesmo mas ao mesmo tempo é o outro, muito diferente de mim. Será talvez um eu mais verdadeiro, mais próximo ao self, ao meu eu “mais total”, portanto mais real? O confronto diário – face a face, fornece a cada dia pistas a respeito de nossas próprias transformações.
Nesse momento único quando a cada manhã reencontramos nosso reflexo há um encontro entre o real e o imaginário. Quem nos observa, agora, do outro lado não é o sujeito por nós conhecido e percebido, mas um outro agora diferente. A cada dia, temos de fazer um confronto entre a imagem refletida e aquela interiorizada. Olho para mim mesmo ou, para meu reflexo, e tenho de integrar na consciência as mudanças então percebidas. Quem sou eu e quem o outro do outro lado? Sou ainda a mesma pessoa?
Se é preciso perceber para ter consciência, o espelho é fundamental. Quem sou eu afinal? Como diz Rubem Alves, espelhos existem desde o início dos tempos. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança “reflexos onde ele poderia se ver”. Narciso se apaixona, sem saber, pela própria imagem refletida. Perseu vence a Medusa confrontando-a com a própria imagem espelhada. “Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais belo que eu?”
“E eis que percepção, pensamento, consciência da própria subjetividade, experiência especular, semiose, aparecem como momentos de um nó bastante inextricável (embaraçado), como pontos de uma circunferência cujo ponto de partida parece difícil estabelecer”. (Umberto Eco – Sobre os espelhos pg. 12)
Num processo normal e saudável esse movimento favorece uma atualização diária da assim chamada autoconsciência ou consciência do ego – quem era eu, o que mudou em mim, quem sou eu agora. O encontro com o outro no espelho, descrito por Érico Veríssimo, fala de uma movimentação normal de energia: vou e volto, me revejo e me reconheço, me atualizo, me transformo, tenho minha consciência transformada.
O espelho não traduz, registra aquilo que o atinge, da forma que o atinge. Ele diz toda a verdade de modo desumano… o cérebro interpreta os dados fornecidos pela retina, o espelho não interpreta os objetos. Se ele nomeia, “nomeia um só objeto concreto, um de cada vez, e sempre e somente o objeto que está à sua frente”.
E então pensando junto com Érico Veríssimo: será que existe algo como o reino da verdade ou será ela apenas mais uma das criativas construções humanas?