por Regina Wielenska
Certa vez escutei, num congresso na Universidade Estadual de Londrina, uma psicóloga de uma pequena cidade do Paraná relatar sua intervenção. Recebera a incumbência de avaliar o perfil cognitivo de uma menina com onze anos que não conseguia ser alfabetizada, mesmo frequentando a escola desde o primeiro ano. A depender dos resultados, talvez a menina fosse encaminhada para uma ONG que atendia crianças com rebaixamento intelectual grave. Eram tempos em que a palavra inclusão inexistia no vocabulário dos educadores. Atualmente a palavra circula por aí, mas é raramente aplicada de verdade. Só que esse é um tema diverso do que quero discutir hoje.
A psicóloga se perguntou: qual o histórico de alfabetização, os métodos e recursos usados com a menina?
Descobriu que ela foi inicialmente exposta ao que toda classe usava, e obviamente isso não funcionou. A menina experienciou massivamente o fracasso, vergonha, todo amargor do insucesso, ano após ano, apenas mudava de classe, mas era supostamente ensinada com mais do mesmo. Os professores desistiram dela. A aluna tornou-se o peso morto no primeiro ano. Os insucessos produziram pouca motivação e até repulsa pra explorar o tema ("as letras, palavras") com a qual não foi possível interagir.
E, sem conseguir ler, todas as portas do mundo, tão cheias das letras, permaneceram fechadas para ela. Os pais não queriam que fosse para a escola especial, preferiam que, mesmo sem ler, fosse trabalhar na vendinha que sustentava a família. Poderia varrer o chão, descarregar mercadoria, fazer pacote. O destino dela estava prestes a ser selado, sem qualquer clemência.
Minha colega de profissão entendia que talvez sua cliente fosse capaz de aprender por meio de outros recursos. Isso nunca fora experimentado. Combinou que, como voluntária, ofereceria um atendimento intensivo. Recheado de brincadeiras, num clima em nada punitivo, teve início o atendimento psicopedagógico da criança. Tecnicamente o procedimento chama-se discriminação sem erro. Mas, na prática, foi assim: a primeira sessão foi só de brincadeiras e muita conversa, pra construir um vínculo entre a criança e a terapeuta. A segunda sessão teve um minuto de trabalho com sílabas e 49 de diversão. Cada vez um minuto de treino era acrescentado, o que reduzia em inversa medida o tempo da brincadeira.
No que consistia o treino? Inicialmente, apresentou-se visualmente uma sílaba à criança, digamos que BO, e lhe disseram o som correspondente. Naquele minuto brincaram com a correspondência entre a forma visual e sonora de BO. Tudo bem, então. Na sessão seguinte lhe perguntavam qual o som daquela sílaba, ela sem hesitar disse ser BO. Ponto pra guria! Sentiu o sabor do sucesso. Na sequência lhe apresentaram visualmente BO e LO e pediram a ela pra identificar o BO. Acertou. Depois lhe contaram que a outra tinha o som de LO. Qual o LO? Qual o BO? Invertiam a posição dos cartões escritos, e com total acerto continuou a diferenciar as sílabas.
Terminaram por formar, com sucesso BOLO e LOBO. Depois trabalharam com o já conhecido BO e uma nova sílaba, a LA, e assim foi. A cada sessão o jogo se repetia, parte-se do conhecido, até chegar ao que não se sabe, aí era a hora dela ser apresentada a uma nova sílaba. A escrita foi deixada de lado nesta fase. Primeiro visava-se reconhecer sílabas e usá-las pra formas algumas palavras, gradualmente passou a reconhecer algumas palavras escritas. Foi um trabalho planejado, de formiga, muito perseverante.
Sucesso transforma treino em prazer
O sucesso foi tamanho que o que era treino tornou-se enorme prazer, indistinto das demais brincadeiras. Chegou o dia em que treinaram com as sílabas por uns tantos minutos. A terapeuta ia cessar o treino e liberar acesso aos brinquedos. A menina pediu pra continuar jogando com as letras, estas se tornaram algo bem mais divertido que o resto. Sei que em seis meses ela lia bem, um feito admirável. Ao final do ano tinha desempenho geral muito bom e podia muito bem mudar de série. Adeus escola especial ou a vassoura da venda.
As professoras quiseram aprender com a psicóloga seu métodos. Afinal de contas, existiam muitas outras crianças em situação similar ou quase tão graves. Criou-se um esquema pra viabilizar isso. A psicóloga fez tudo isso fora de seu horário de trabalho, em caráter absolutamente voluntário. Seu nome completo, lamentavelmente eu o perdi na memória e não recuperei nos arquivos de papel, mas acredito piamente que se chamava Luzia.
Nem sempre quem não aprendeu por um método não será capaz de ser dar bem com outro. Rotular alguém como incapaz de nada ajuda. Fóbicos de volante podem aprender a lidar com o medo e dirigirem. Pessoas com lesões neurológicas ou ortopédicas podem readquirir habilidades perdidas, tudo é questão de escolher recursos apropriados, insistir num rumo cientificamente validado e motivar o aprendiz, partindo-se de uma relação genuína e afetiva com o indivíduo que está com algum prejuízo.
Professores precisam rever seus conceitos: enquanto o aluno não aprender eles não ensinaram, não importa o quanto se esforçaram em repetir as mesmas coisas até não aguentarem mais.