por Monica Aiub
A filosofia clínica surgiu com a percepção de Lúcio Packter: A medicina possui instrumentos para tratar as doenças, mas não possui instrumentos para tratar o sofrimento humano diante das limitações geradas pela doença, pela morte de alguém querido.
Como lidar com estas limitações diante das quais não há o que se possa fazer? Eis uma questão muito presente nos consultórios de filosofia clínica.
Muitas vezes, um diagnóstico pode se colocar como um problema filosófico. Por exemplo, a pessoa começa a perder a visão e descobre que, devido a um problema neurológico, provavelmente a perderá por completo. Como se posicionar diante de tal notícia? Como lidar com isso? Ou a pessoa recebe um diagnóstico acompanhado de um prognóstico: “o seu caso não tem cura”; ou “não há saída: você terá que aprender a viver com isso”; ou “você tem 6 meses de vida”; etc.
Mas o que somos nós diante de um diagnóstico? De um prognóstico? Diagnósticos ou prognósticos são determinações ou possibilidades? Se não há o que se possa fazer diante de uma situação, não há formas para vivê-la? O que há, para além de um diagnóstico?
Já recebi, em meu consultório, pessoas com diferentes diagnósticos: câncer, depressão crônica, síndrome do pânico, esquizofrenia, distúrbio afetivo bipolar, perda de visão, perda de audição, tumor cerebral, diabetes, arteriosclerose, esclerose múltipla, testes positivos de HIV, HPV, hepatite C, e muitas outras nomenclaturas. Em alguns casos, o diagnóstico estava equivocado, bastando pesquisar melhor, com exames mais precisos, com visões de outros profissionais. Em outros casos, o diagnóstico foi confirmado.
É interessante observar partilhantes (pacientes) que se apresentam a partir de seus diagnósticos: “Eu sou bipolar”; “Eu sou esquizofrênico”; “Eu tenho câncer”; “Eu sou cardiopata”; “Eu sou soroposito”, etc., como se esse dado resumisse toda a sua existência, toda a sua potencialidade de vida.
O trabalho em filosofia clínica não se detém em diagnósticos, prognósticos e suas “pseudodeterminações”. Primeiro porque o resultado das pesquisas científicas pode ser questionado em seus métodos e critérios. Depois porque há muitas possibilidades além daquelas que a perspectiva de uma única ciência possa abarcar.
Não afirmo, com isso, que os diagnósticos não sejam importantes. Ao contrário, o saber acerca de nossa saúde é importantíssimo para que possamos cuidar do que necessita ser cuidado. Receber prognósticos também é importante, para que possamos ter ciência dos tratamentos, das possibilidades. O trabalho criterioso da medicina em muito tem colaborado não apenas para aumentarmos a expectativa de vida, como para conquistarmos uma vida de mais qualidade.
Refiro-me a situações específicas, nas quais um diagnóstico é tomado como uma sentença irrevogável, irrefutável, reduzindo a pessoa a uma doença, a uma limitação. Refiro-me a prognósticos tomados como condenações perpétuas, incluindo, por vezes, as gerações seguintes – atendo partilhantes cujo maior medo é que seus filhos recebam o mesmo diagnóstico que possuem. Alguns decidem por não ter filhos, apesar de desejarem muito, porque não querem correr o risco de colocar no mundo alguém que sofrerá como eles.
A questão que se coloca é: como são feitos os diagnósticos, a partir de quais parâmetros eles são estabelecidos? Em Doença: um estudo filosófico, Leônidas Hegenberg, ao analisar os métodos e critérios para se definir os padrões de saúde e doença, de normalidade e patologia, afirma jocosamente: “normal é apenas a pessoa que não foi suficientemente examinada”. No mesmo livro, ele demonstra como são feitos os cálculos estatísticos que determinam os padrões, os índices de normalidade. Além das dificuldades em fixar tais índices, Hegenberg nos alerta para o fato de alguns estarem saudáveis, apesar de fora do índice estabelecido; enquanto outros estão doentes, embora atendam ao determinado em tais índices.
Quem está doente, afinal?
“Aquele que se afasta do ‘normal’”.
Francisco Ortega e Rafalea Zorzanelli, em Corpo em evidência, traçam uma história da construção dos diagnósticos a partir do ver, mostrando como a incorporação de tecnologias à prática médica trouxe alterações na forma como lidamos com o corpo, com a saúde e a doença. Tratando da reorientação diagnóstica ocorrida no século XX, em especial pela criação de instrumentos de verificação e mensuração, eles constatam dois quesitos fundamentais: precisão e tempo.
Interessante a descrição dos autores sobre o desenvolvimento tecnológico que acompanha a construção dos diagnósticos, em especial o desenvolvimento de instrumentos de visualização corporal, que substituem, rapidamente, o olhar do médico e o relato do paciente pela confiança nos instrumentos tecnológicos – sobretudo as neuroimagens – dando a impressão de objetividade total, como se não fosse necessária a interpretação dos resultados das mensurações.
Muitos são os autores que poderiam ser citados por elaborar a crítica aos métodos e critérios que fundamentam a construção dos diagnósticos: Canguilhem, Foucault, Deleuze, Guattari etc. E isto não significa abdicar dos cuidados que esta forma médica nos possibilita. Ao contrário, significa que devemos fazer uso de tal instrumento, ao mesmo tempo em que podemos contar com outras possibilidades de compreensão de nosso existir.
O diagnóstico, o prognóstico, o tratamento da doença são atribuições do médico. Ao filósofo clínico cabe apenas refletir sobre a existência e seus significados diante de tais diagnósticos, cabe provocar o partilhante a encontrar formas de vida possíveis a partir de sua nova condição. E para tal, o filósofo clínico se debruça sobre o relato da pessoa, não apenas o relato sobre seu diagnóstico, mas o relato da historicidade de sua vida.
Além disso, o filósofo clínico estuda, juntamente com a pessoa, as possibilidades existentes no universo em que ela se insere; e a auxilia a avaliar, dentre as possibilidades, aquelas que são mais condizentes com suas necessidades.
Nesse processo, é comum que a pessoa que chegou se apresentando como “um diagnóstico”, descubra-se para além dele, compreenda-se como inúmeras possibilidades. Afirma Canguilhem: “A existência da doença como fato biológico universal, e singularmente no homem como prova existencial, suscita uma interrogação até hoje sem resposta convincente relativa à precariedade das estruturas orgânicas. Para falar com propriedade, nada do que é vivo é acabado.”(2005: 32). Daí o diagnóstico como um problema filosófico: se não há uma resposta convincente que resolva o problema, o problema está posto, e pode ser pensado em suas múltiplas dimensões.
Cito como exemplo partilhantes que, a partir de diagnósticos de “doenças sem solução”, descobriram-se vivos, e constituíram suas vidas de modo muito melhor do que a forma que possuíam anteriormente. E isto só foi possível porque eles questionaram a determinação do diagnóstico e do prognóstico, permitindo que suas existências se dessem a partir daquela condição inicial, apenas como um entre tantos dados, não como uma sentença.
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia do pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. 2 ed. Rio de Janeiro: WAK, 2008.
CANGUILHEM, G. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
HEGENBERG, L. Doença: Um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
ORTEGA, F; ZORZANELLI, R. Corpo em evidência: A ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.