Por que há um excesso em diagnósticos de autismo? O que precisa ser revisto? O ‘Transtorno do Espectro de Autismo’ tem aumentado nos últimos anos? Entenda a relação entre o conto “O Alienista” de Machado de Assis e o excesso desses diagnósticos.
A denominação atual do autismo é Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) conforme o Manual Estatístico e Prognóstico de Doenças Mentais (DSM-5) de 2013. O TEA é uma condição complexa que afeta a comunicação, o comportamento e a interação social. Atualmente, entende-se o autismo como parte de um continuum de características próprias de um espectro com causas biológicas e congênitas. É um quadro inespecífico decorrente da causação múltipla de fatores não lineares, o que justifica a imensa variedade de suas manifestações.
Os sintomas costumam ser reconhecidos durante o segundo ano de vida, de 12 a 24 meses, uma vez que as diferenças no desenvolvimento entre as crianças são mais percebíveis a partir dos 12 meses. Mas, se o atraso e a alteração do padrão do desenvolvimento forem graves, existe a possibilidade de levantar-se a hipótese do autismo antes dos 12 meses.
Aumento progressivo do autismo
A prevalência do TEA tem aumentado progressivamente ao longo dos anos. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos mostrou que em 2004, 1 em cada 166 pessoas tinha TEA; em 2012 esse número estava em 1 para 88; em 2018, a prevalência passou a ser 1 em 59; em 2020 a prevalência estava em 1 para 54 e em 2023 em 1 para 36 pessoas. Considerando-se a tendência de aumento observada nas últimas décadas, é possível que esse número continue a aumentar. A conscientização sobre o transtorno tem contribuído para essa tendência.
Sabe-se que o diagnóstico precoce é um grande passo para melhorar a possibilidade de atendimento adequado que poderá permitir uma melhor evolução e prognóstico do quadro. Entretanto, o aumento no diagnóstico de condições como o autismo, verificado atualmente, merece atenção e exige muita cautela.
O processo diagnóstico comporta a administração e a pontuação de ferramentas, seguido pela integração de todos os dados obtidos por um clínico com conhecimento e experiência em autismo.
Processos diagnósticos inadequados podem resultar em diagnósticos errôneos. A evidência de um exagero de diagnósticos de TEA é uma preocupação atual em vários países, o que mostra a necessidade de se conceber estratégias de avaliação que limitem a classificação incorreta e os falsos positivos.
A questão é que muitos comportamentos atípicos associados ao TEA não são específicos do TEA. O comprometimento social é uma característica inespecífica do TEA e ocorre no contexto da maioria dos transtornos psiquiátricos. O prejuízo social decorrente do autismo não é exatamente o mesmo prejuízo social resultante de outros transtornos psiquiátricos. Por exemplo, as dificuldades de relacionamento social podem resultar da ansiedade ou do medo do julgamento do grupo em uma criança ansiosa; de comportamentos perturbadores e agressivos em indivíduos com perturbações externalizantes; ou da falta da motivação social em uma criança com autismo.
As estratégias para detecção de autismo fornecidas pela web, nas quais os critérios de inclusão são limitados a listas de verificação de autismo autopreenchidas e/ou diagnósticos autorrelatados não verificados, têm o efeito de aumentar a classificação incorreta, resultando em um alto número de falsos positivos.
As consequências do excesso do diagnóstico devem ser realmente consideradas. Diagnosticar erroneamente uma criança com TEA não é inofensivo. Ter um diagnóstico de TEA pode restringir indevidamente a gama de experiências sociais e educacionais de um indivíduo e ter efeitos duradouros na formação de sua identidade. A nível populacional, o uso injustificado de serviços intensivos levanta preocupações sobre a equidade e a justiça no acesso aos serviços para crianças com perturbações do desenvolvimento neurológico que não o autismo.
É possível também que se esteja diagnosticando excessivamente algumas pessoas com autismo nível 1, conhecido como autismo leve, de alto rendimento, ou com Síndrome de Asperger. Alguns dos sinais presentes no autismo são encontrados em muitas outras condições nosológicas e mesmo em pessoas dentro do padrão normal de desenvolvimento.
Mais um fator pode ser considerado quanto ao excesso de diagnóstico é a visão romanceada do autismo, observada atualmente. Pessoas famosas, conhecidas como cientistas, artistas e esportistas com dotação especial são nomeados como autistas ou se nomeiam. Consequentemente, possuir esse diagnóstico pode conferir uma validação positiva à própria patologia.
É necessário limitar a classificação incorreta e os falsos positivos. As consequências negativas dos erros de diagnóstico, resultantes do uso não apropriado dos instrumentos e de avaliações clínicas não adequadas têm sido consideradas como um desafio maior da época contemporânea.
Relação entre o conto “O Alienista” de Machado de Assis e o excesso de diagnósticos de autismo
Esse excesso de diagnóstico de autismo faz lembrar a lógica encontrada no conto ‘O Alienista’ de Machado de Assis, publicado em 1882. Imerso na lógica categorizante, o alienista se tornou incapaz de reconhecer as falhas na percepção entre o normal e o patológico. Se a maioria das pessoas apresenta desvios, o anormal passa ser quem apresenta um modo perfeito de estar no mundo. Machado de Assis apresenta uma crítica mordaz à pseudociência, ao poder desmedido e aos conceitos mutáveis de normalidade. Assim, quando a maioria é exceção, cumpre rever a regra.