por Luiz Alberto Py
No texto anterior, falei sobre o Exercício da psicanálise a serviço do paciente e não da psicanálise (clique aqui)
Neste, falarei sobre como encontrei um caminho menos insatisfatório para tratar meus pacientes.
Meu pai era psiquiatra e psicanalista. Aos 17 anos fiz, sem saber bem por que, vestibular para a Faculdade de Medicina. Perambulei pela Cardiologia e pela Clínica Geral, e no 5º ano de Medicina me encontrei estagiando na Psiquiatria ainda sem saber por quê.
O único dado que trazia comigo com clareza era que minha experiência no ambulatório de Cardiologia me mostrava que mais da metade dos clientes que lá aportava não sofria de qualquer transtorno cardíaco, mas sim de perturbações emocionais. Isto me levou a buscar a Psiquiatria para entender o que se passava com essas pessoas.
Fiz três anos de residência em psiquiatria e, estimulado por meu pai, me envolvi em um projeto de me tornar psicanalista. Entrei para uma das Sociedades filiadas à IPA (International Psycho-analytic Association, fundada por Sigmund Freud) e depois de sete anos de análise, e mais cursos, supervisões e trabalhos escritos, me vi graduado como Psicanalista.
Durante este período, iniciei o meu trabalho como psicoterapeuta. Datam daí minhas primeiras ansiedades com o desempenho profissional, preocupado em acolher bem os clientes que a cada dia encontrava no consultório, pessoas que depositavam confiança em mim. E a cada noite de aulas, me perguntava como aquilo que eu estava ali aprendendo poderia me ajudar a atender de forma satisfatória as pessoas que no dia seguinte lá estariam esperando por mim.
Eu estudava textos teóricos e clínicos, principalmente Freud e Melanie Klein, em busca de ajuda, mas quando estava com os pacientes me via tenso, aflito, sentia que o que lia nos livros – e lia muito – não era suficiente. Conversava com meus supervisores, ouvia deles palavras de estímulo, muitas até; eles me ofereciam interpretações mais corretas do que as minhas, me davam conselhos, descreviam meus clientes melhor do que eu poderia fazê-lo, acalmavam meus temores de não estar ajudando aqueles que em mim confiavam, e me tratavam com carinho. Mas isto ainda não era suficiente.
Minha atitude no trabalho era formal e prudente. Tratava meus clientes com um distanciamento quase britânico, chamava-os de senhor e senhora, e apresentava-me vestido de paletó e gravata. Considerava que eles tinham a função de me fornecer material e eu tinha função de lhes fornecer, em troca, interpretações. Nossas posições e tarefas estavam muito claramente definidas. Havia em mim insegurança, mas não questionamento. Acreditava que me tornar melhor analista era questão de absorver os ensinamentos dos mais experientes, e não me passava pela cabeça questioná-los, duvidar deles.
“El Contexto del processo psicoanalítico”
Nesta época caiu-me nas mãos o livro de um genial psicanalista argentino, Emilio Rodrigué: “El Contexto del processo psicoanalítico”. Foi precioso. Nele, Rodrigué falava da “cozinha da interpretação”, ou seja, dirigir sua atenção e a do leitor para o processo que ocorria dentro do analista que iria redundar na produção de uma interpretação. Fiquei fascinado. Nesta mesma época ocorreu uma experiência transformadora no meu trabalho. Creio que fruto das minhas supervisões, das minhas reflexões, das minhas leituras, sucedeu algo que simbolizo numa ocorrência.
Certo dia, tentando formular uma interpretação, disse para uma cliente: “Isto sugere que…” E ela me interrompeu dizendo: “Eu sugiro? É, eu sou capaz de dar sugestões!” Ficou muito empolgada com o que ela tinha ouvido. Anotei na ocasião o fato de que o meu “isto sugere” tinha sido ouvido por ela como “você sugere” e registrei também a satisfação com que ela tinha reagido àquilo que ela havia entendido: eu estar incluindo a pessoa dela no processo de produção da psicanálise. Só meses depois, pude perceber que na verdade ela havia apontado uma questão essencial: o fato de que quando terapeuta e cliente trabalham juntos, se ajudando mutuamente, melhor este processo pode evoluir.
Nesta época em São Paulo chegou Frank Philips, como um arauto de Wilfred Bion. Philips era um inglês que havia vivido no Brasil anos antes e falava bem nossa língua. Ele voltara para a Inglaterra onde se formou psicanalista tendo sido cliente de Melanie Klein e depois de Bion. Wilfred Bion, por sua vez, havia feito sua formação com Mrs. Klein e depois desenvolvera ideias próprias muito originais sobre a prática da psicanálise.
Segundo nos mostrou Philips na época, Bion desenvolvera reflexões fascinantes sobre a importância de rever o conceito de transferência assinalando o dado essencial do “aqui e agora”, e também a questão fundamental da postura do terapeuta, uma primeira referência a uma ideia hoje clássica de o psicanalista trabalhar “sem desejo, sem memória”. Quanto ao “aqui e agora transferencial”, Philips trazia a formulação bioniana de que o único lugar e o único tempo onde o analista pode oferecer qualquer espécie de colaboração ao seu analisando é o momento do encontro e a única coisa a se considerar era o que ocorria neste momento.
Qualquer comunicação oriunda do analisando seria olhada sob a luz de “o que quer isto dizer para nós, aqui e agora”. Em outras palavras, a pergunta era sempre “por que esta pessoa vem até aqui me comunicar neste momento o que acabou de fazer” ou “fazer isto que ele acabou de fazer”. A transferência, segundo Bion, passava a ser um fio condutor para a percepção do analista sobre o processo terapêutico. Quanto à questão da postura do analista, ele enfatizava que a memória distorce os fatos e é sensorial, sua presença a cada momento funciona como uma superposição sensorial que nos atrapalha a percepção do aqui e agora.
Assinalava ainda a importância de nos vermos livres de todo e qualquer desejo, principalmente em relação ao cliente e ao processo psicanalítico, porque qualquer desejo do analista torna-se um ponto fraco através do qual pode atuar a resistência do analisando.
Experimentei a disciplina bioniana; os resultados me fascinaram. Vi evoluções e progressos no meu trabalho que só pude qualificar de espantosos. Minha visão da relação com os clientes se transformou por completo, sentia que me tornara muito mais capaz de perceber os movimentos emocionais que ocorriam. Ao tentar me isentar do desejo e da memória – principalmente, como dizia Bion, do desejo de curar ou mesmo de entender o meu analisando – ficava, quanto mais conseguia desenvolver esta disciplina, mais livre para exercer a tarefa de psicanalista. Acho importante reafirmar aqui que não tenho nenhuma pretensão de estar mostrando o caminho da verdade; apenas conto como encontrei um caminho que para mim foi menos insatisfatório.
Depois veio o contato pessoal. Em 1973, Bion chegou a São Paulo para uma série de oito palestras. Já na primeira nos confundiu ao afirmar que o medo que o analista sentia durante uma sessão psicanalítica era sinal de que estava ocorrendo alguma coisa valiosa. Para mim, a mensagem de Bion foi uma afirmação de que o medo que podemos sentir durante uma sessão não é um sinal vermelho; pelo contrário, é um sinal verde. E isto foi transformador.
Ao longo do tempo, estes ensinamentos foram me levando a uma reflexão sobre a prática psicanalítica que se me afigura muito similar ao aprendizado do discípulo do mestre Zen. Por exemplo, a arte do arqueiro Zen consiste em atingir o alvo sem fazer pontaria, ou seja, esquecer completamente da meta e sua intenção de atingi-la; a meta é apenas a perfeição da integração consigo mesmo ao exercer uma tarefa. Creio que esta é outra formulação para o que nos diz Bion acerca de evitar consciente e disciplinadamente desejo e memória durante o trabalho. Como ilustração, pretendo oferecer alguns momentos de meu trabalho no meu próximo texto a ser publicado aqui.