por Monica Aiub
“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles.” (ROUSSEAU)
Você se considera livre e autônomo ou, como afirma Rousseau, encontra-se preso?
Para responder se existe ou não autonomia, ou que critérios utilizar para considerar uma pessoa ou um grupo autônomos, é preciso, antes, esclarecer esse conceito, tão utilizado nas discussões contemporâneas.
Autonomia: a norma do mesmo
Derivada do grego, a palavra autonomia significa a norma do mesmo. Após um período em que as desventuras humanas eram explicadas a partir da determinação de deuses caprichosos, o período antropológico, na Grécia Antiga, é caracterizado por seres humanos voltados para si mesmos e responsáveis por identificar as causas dos desequilíbrios da natureza, da sociedade e de si, obtendo assim elementos e caminhos para restaurar o equilíbrio natural.
O surgimento das leis indica um ser humano capaz de determinar a si mesmo. Retornando à concepção do “conhece-te a ti mesmo”, do conhecer para governar, a norma dada pelo próprio homem, e não pelos deuses, é o que inicia o percurso do conceito de autonomia. Durante a Idade Média, com o teocentrismo, o poder político era justificado com o argumento do “direito divino”; já o Renascimento é caracterizado como uma espécie de olhar para o período antropológico, resgatando o ser humano como centro. O lugar do homem moderno é ao alto e ao centro, o que implica na excessiva valorização da razão. O Iluminismo promove ainda mais a razão, levando-a ao pedestal.
Segundo Kant, o ser humano é capaz de agir movido por um único condicionamento, qual seja, a razão. Autonomia – lei ou norma do mesmo – consiste, então, em determinar suas próprias leis, não como um sujeito empírico, condicionado pelo ambiente ou por suas paixões, mas como um sujeito transcendental, condicionado apenas pela razão, que é universal e necessária.
Assim, se consideramos para nossas escolhas os desejos, os instintos, nossas necessidades biológicas ou as determinações sociais, somos movidos por uma determinação externa, estranha à razão e por isso não temos autonomia, não somos livres.
Com isso, Kant situa a autonomia e a moralidade fora do campo da experiência, exigindo uma fundamentação racional para justificar as ações. O exame de casos, de exemplos práticos, é insuficiente para orientar as ações. É necessário que cada ação seja avaliada segundo os princípios da razão.
Contudo, o conceito de vontade em Kant está muito distante do conceito de desejo, trata-se de um princípio racional universal. “A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo.” (KANT, 2005: 48). Esse princípio racional que orienta nossas ações chega-nos em forma de um mandamento racional.
Note que não se trata de uma lei, de uma norma social, da exigência de uma cultura, mas da própria razão de um sujeito transcendental, plenamente incondicionada e, portanto, autônoma. Ser livre é, para Kant, obedecer às normas do dever, desse mandamento da razão pura que ele denomina Imperativo Categórico. Se agimos por interesse, seja ele nosso ou de alguém, agimos por uma determinação, por um condicionamento e, consequentemente, não somos livres nem autônomos, somos heterômonos.
Como poderíamos orientar nossas ações autonomamente segundo Kant?
Faríamos algumas perguntas a nós mesmos antes de nos posicionarmos, de agirmos, de escolhermos. Aquilo que orienta nossas ações, aquilo para o que nos direcionamos, poderia tornar-se uma lei universal? Ou seja, aquilo que escolhemos foi orientado por um princípio que deveria servir de princípio para orientar a ação de qualquer outra pessoa? Nossa ação é um fim em si mesma ou um meio? Ela é movida por si mesma ou por algum tipo de interesse? Em nossas ações, o ser humano, seja ele o próprio agente ou qualquer outro humano, é considerado como um fim em si mesmo? Ou é considerado como um meio?
O oposto da autonomia, a heteronomia, é a norma ou lei do outro, que pode ser o Estado, a sociedade, as pressões do meio, as próprias paixões, qualquer outro que não sua própria razão. Segundo Kant, ser autômono é não permitir que outras determinações, além da razão, orientem a ação humana.
Isso poderia provocar o equívoco de pensarmos que Kant não considerava a existência de condições biológicas, sociais, legais. Na Crítica da Razão Prática, ele destaca a existência de um pathos, ou seja, do quanto somos afetados por aspectos biológicos, sociais, sensoriais, sentimentais, entre outros, mas destaca ainda mais a necessidade de nossas ações não serem condicionadas por tais aspectos. Uma ação autônoma é condicionada, exclusivamente, pela razão pura, sua única condição.
Até que ponto a condição de autonomia do sujeito é possível? Seria ela, como afirma Nietzsche, uma ficção? Apesar de apontar para a ficção da autonomia da razão, Nietzsche não desconhece que essa é uma forma dominante de interpretação de mundo. Leis, códigos, exercício da cidadania, todos esses elementos são fundamentados na existência de um sujeito racional, autônomo, autodeterminado, mas esquecemos que estes mesmos códigos e leis estabelecem-se como condição para determinar se o sujeito é ou não autônomo perante a lei, ou seja, se os direitos civis de alguém podem ser cassados ou restituídos. E, ainda, se subjetivamente, esse indivíduo deve ou não ser destituído da condição de sujeito passando a ser caracterizado como louco ou incapaz, o que se trata de um problema mais de caráter político do que *ontológico, antropológico ou **epistemológico.
Se a loucura priva a pessoa da capacidade de julgamento, de decisões, de sua condição de sujeito, então o louco não deve decidir e, consequentemente, deve haver alguém que decida por ele. Mas Nietzsche nos provoca a refletir: quem é o louco?
Diante desse quadro inicial de fundamentação do conceito de autonomia, você se considera autônomo? Responsável por sua própria vida? Que critérios utiliza para avaliar se sua condição é de sujeito autônomo ou não?
*Ontológico: relativo à ou próprio da ontologia, a investigação teórica do ser
**Epistêmico: relativo a 1epistema ou episteme (conhecimento ou saber como um tipo de experiência); puramente intelectual ou cognitivo
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, M. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martins, 2002.
_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Ed. 70, 2005.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
ROUSSEAU, J. O Contrato Social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1995.