por Dulce Magalhães
Vamos nos imaginar como personagens de um grande romance. O autor cria suas personagens, porém elas crescem ou não na trama, dependendo de como suas vidas vão ganhando complexidade e suas histórias se tornam mais e mais interessantes. O autor já não domina suas personagens. Elas é que, conquistando vida própria, dão o tom e definem seus destinos.
Tem personagem que entra lá pela página 43 e sai na 312, sem fazer a menor diferença, sem marcar sua passagem. Tem personagem que só fica um pequeno capítulo e muda a história do livro. Tem personagem que marca até mesmo por ser uma memória de valor, influenciando a vida de várias outras personagens.
Somos personagens da história humana, porém que papel estamos representando? E, principalmente, que história é essa que estamos ajudando a escrever? Não podemos nos permitir um papel de esmaecida palidez na vida. Nossa existência tem que se fazer valer. Experimentar, testar, brincar, errar e recomeçar, acertar e comemorar. Marcas de uma vida, trajetória colorida de alguém que, de fato, existiu.
E existir é ganhar consciência sobre si mesmo. Tem personagem que não se dá conta dá própria existência, aparece e desaparece sem saber que já viveu. Ganhar consciência é sempre perigoso, pois nos coloca em situação de decisão, de dizer como vamos nos comportar nos próximos capítulos, como vai ser a continuidade da história depois de nossa ação.
A consciência é resultado de uma aprendizagem, uma experimentação, uma ação que nos permita perceber mais da realidade, descobrir sobre nós mesmos e ampliar nossas habilidades em ser e fazer. Há sempre perigo aí, como diz um ditado alemão, pois depois de alfabetizado, não se passa mais por um cartaz sem ler. A consciência é assim, por onde a gente for ela vai junto, cobrando uma mudança, exigindo uma resposta, pressionando por uma ação.
É um remédio meio amargo para o mal de não existir, contudo é o remédio que nos dá a autonomia da existência, o livre-arbítrio, a visão de si mesmo. É a cura que precisamos para compor essa experiência fugaz que costumamos chamar de felicidade. É claro que há personagens felizes em serem simples personagens inconscientes. Deve ser feliz o boi que pasta placidamente no campo, sem ter consciência de que é um boi. Ou a lebre, que corre feliz pelos campos e só se percebe existência quando, com o coração acelerado, vê a vida se esvaindo nas garras do felino. Consciência transitória e, por isso mesmo, triste momento.
Nos inolvidáveis romances percebemos a grandeza da personagem que assume seu compromisso de tomar decisões sobre a vida, que sofre por amor, que briga pela dignidade de ser quem é, luta contra preconceitos, se bate contra a injustiça, nos faz vibrar pela sua fé inabalável em um final feliz. Personagens repletas de alma, plenas de existência e, por isso mesmo, marcantes, inesquecíveis.
Podemos viver como Bela Adormecida, onde toda a história se passa enquanto repousamos em suave dormência. Todavia, o melhor mesmo é ser o aventureiro que busca tesouros, conquista grandes amores, corre riscos extremos, mas vive cada momento da trama. Não sei se o perigo maior é confrontar perigos ou adormecer na esperança de que alguém nos salve. Tem muita personagem dormindo para a própria existência, esperando um salvador, um resgate para uma outra vida. Porém, esse romance é único, vai acabar na página 621 e, mesmo com continuação, já não será mais a mesma história.
Também não vale a pena ser uma grande personagem em uma história ruim. Temos que extrapolar o poder de ditar a própria existência e escrever também a história do mundo. Viver numa bela obra e ser protagonista dela é o ápice da grandeza de uma personagem. Que personagem é você e que obra você está compondo? Ao fechar o livro dessa história, nossa existência deve deixar uma forte impressão na mente do leitor, que coexiste conosco. O melhor mesmo é sermos personagens tão inesquecíveis que o leitor vai querer ler de novo, pois está com saudades da gente.