por Dulce Magalhães
A mitologia é o repositário de todo saber acumulado pela humanidade. Através dos mitos as novas gerações podem tomar contato com o desenvolvimento da consciência de toda a humanidade e a sabedoria dos ancestrais.
Joseph Campbell foi o grande mitologista de nossa era e soube mapear como ninguém as mais belas e importantes passagens do conhecimento universal.
Campbell nos mostra a importância do mito como relato de um outro estado de consciência, de outra forma de se relacionar com a vida e seus desafios. O mito traz, invariavelmente, uma passagem simbólica sobre a integridade da vida e aspectos superiores que vão do nascimento à morte, onde o ser humano experimenta outros patamares de realidade, libertando-se de crenças limitantes e percebendo mais da verdadeira essência da existência.
A jornada heróica do ser, retratada nos mitos, trata do descortinar da passagem, mas não se refere ao enfrentamento do medo da morte e sim vencer o medo da vida. A liberdade proposta nos mitos é para nos lembrarmos da fugalidade, do quão transitório é o tempo da existência e que, portanto, não estamos fazendo esta jornada para atendermos os preceitos da cultura, que nos impõe deveres artificialmente criados, mas para experimentar o prazer mais profundo de viver plenamente.
Isto exigirá de nós a escolha por nós mesmos, transcender os limites civilizatórios para ampliar a própria experiência. Fazer o que se deseja é viver em vertigem. Muito mais fácil é fazer o que esperam de nós, contudo, a jornada heróica é percorrer a trilha do espírito. Isso significa experimentar as provações – que são a morte de um ego – para o emergir da verdadeira trajetória, o mito pessoal que viemos percorrer.
O herói não é um transgressor. Friedrich Wilhelm Nietzsche, famoso filósofo alemão do século XIX, fala do caráter da maturidade como de alguém que conhece as regras e se utiliza delas para viver em perfeita harmonia consigo mesmo. É como um artista que, primeiro estuda tudo sobre arte, suas regras e técnicas e depois cria livremente se utilizando delas, não sendo utilizado por elas. O herói não transgride, transcende. Não é um rebelde, é um desperto.
Despertar é uma qualidade da consciência que nos torna autorresponsáveis. É quando não esperamos mais encontrar culpados ou salvadores, mas nos sentimos no comando da própria experiência e tomamos nossas decisões baseados em valores e esperanças próprias. O cerne de toda a questão mítica não está na capacidade heróica, inerente a todos os seres humanos, mas no uso que fazemos dela. São preceitos para uma existência harmoniosa e integrada com o todo. É alcançar um respeito profundo por tudo o que é vivo a ponto de morrer por isso. É o estado mais ecológico pela compreensão profunda das consequências sobre a vida e sua continuidade.
Campbell nos conta uma lenda dos pigmeus em que um dia um menino encontrou um passarinho com o mais belo canto na floresta. Encantado, levou o passarinho para casa, mas seu pai ficou aborrecido por ter que alimentar e cuidar do passarinho. Ele cantava todos os dias, mas o pai do menino não percebia a beleza do canto, só percebia o problema que era cuidar de um passarinho. Um dia o pai matou o passarinho, e assim matou também o seu canto. Quando o canto desapareceu do mundo, o pai morreu.
Essa é uma bela história mítica para nos recordar de nossa própria jornada. Há um canto a ser ouvido, uma melodia que precisa ser acolhida e que poderá nos guiar pelas sendas da vida. Cuidar do que é vivo é tarefa do herói, da heroína. Enquanto estamos preocupados com a própria sobrevivência, não temos sensores para perceber o canto da verdadeira vida. Podemos matar nossa existência mais plena se não atendermos ao chamado da grande matriz, a gaia essencial que nos oferece as condições para a plenitude e a transcendência.
Esse chamado é o canto do pássaro, que pode nos despertar para ouvir o essencial e nos ocuparmos do belo, do bom, do verdadeiro e do justo, como ensinava Platão. Não se trata de abandonar o cotidiano, mas de transformá-lo em algo superior. Fazer o que fazemos, porém com a consciência do jogo de causa e efeito na teia da vida. A rotina não precisa ser alterada, precisa ser transmutada, ser formatada por outro paradigma, mais abrangente, menos focado em sobreviver e mais atento a tudo que nos permite transcender. Só de fazermos essa escolha já iniciamos a jornada mítica, que o herói e a heroína que nos habitam estão nos convidando a trilhar.