Fake news: por que verdade e opinião se confundem

Principalmente em função da última eleição presidencial e da pandemia de Coronavírus no Brasil, a questão das fake news ou notícias falsas tornou-se um assunto recorrente. A reivindicação da validade de crenças não reconhecidas como cientificamente válidas tornaram o ambiente ainda mais conturbado. Há pessoas que possuem a convicção de que a Terra é plana ou de que cloroquina combate eficazmente os sintomas produzidos pelo Coronavírus, embora essas afirmações não possuam qualquer tipo de comprovação científica.

A resposta mais comum a esse tipo de crença é afirmar que ele ocorre em função do desconhecimento do funcionamento da atividade científica, talvez provocado pela desinformação ou por simples falta de educação formal. Na verdade, a explicação mais difundida para explicar a emergência desse conjunto de crenças divergentes com relação ao conhecimento científico é caracterizá-las simplesmente como sinal de burrice.

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A expressão utilizada para designar os adeptos mais ferrenhos do Presidente da República, além de alguns evangélicos é “gado”. Imagino que com isso se queira caracterizar sua disposição a acreditar em qualquer coisa que seja sugerida por líderes políticos ou religiosos, enfim uma certa inclinação para acreditar e obedecer sem realizar um exame próprio – uma crítica.



Fake news: verdade e opinião se confundem  

Acredito, entretanto, que a mera indicação de que a crença em ideias não comprovadas cientificamente consista em sinais de falta de educação não faz justiça ao que está em questão. Desde os anos finais do Século XX tem ocorrido um enfraquecimento nas diferenças entre verdade e opinião no ambiente acadêmico. É natural que algumas dessas noções tenham se expandido para o restante do ambiente cultural, através das mídias impressas ou digitais. Podemos resumir esse enfraquecimento da diferença entre verdade e opinião pela constatação de que a primeira não possui nenhuma qualidade própria que a diferencie da segunda.

Explico como isso ocorreu. Por meio de uma série de críticas, foi se sedimentando a noção de que a diferença entre uma suposta verdade e uma simples opinião é de natureza política. Ou seja, essa diferença ocorreria, por exemplo, por ser a ciência um empreendimento coletivo em que as propostas de verdade seriam analisadas publicamente. Ao contrário de simples opiniões individuais que diriam respeito exclusivamente ao foro privado – cada um pode acreditar no que quiser.

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A diferença seria política na medida em que só poderia ser percebida em função do arranjo social da verdade em contraposição ao arranjo social da opinião. O primeiro, como disse, seria coletivo e o segundo, individual. O que é importante aqui é observar que não existiria nada nas próprias crenças que as tornassem diferentes entre si, nada que diferenciasse a verdade da opinião quando as comparamos uma com a outra. A diferença ocorreria apenas quando analisamos os processos sociais que deram origem a cada uma delas. Esse é um processo que se consolidou no final do Século XX e não uma interpretação do que tem ocorrido nas discussões sobre a ciência e a verdade.

O que ocorreu, então, foi um enfraquecimento da diferença entre verdade e opinião, de tal maneira que não faz mais sentido utilizar argumentos de autoridade para legitimar uma crença. Isso significa que afirmar que “isso é demonstrado pela ciência” não garante nenhum tipo de vantagem em termos de verdade do que afirmar que “essa é minha opinião”. Não estou afirmando que ambas são iguais, mas que houve uma significativa redução da diferença entre elas, de tal forma que se tornou viável assemelhá-las em determinadas circunstâncias.

Se a diferença entre verdade e opinião é política, o sistema de aprovação de verdades religiosas baseado na fé e na obediência a um líder não deveria ser reconhecido como um outro sistema de aprovação de verdades? Como poderíamos qualificar diferentes sistemas coletivos de aprovação de verdades a ponto de dizer que alguns deveriam ser melhores que outros? Como poderíamos afirmar que uma política é melhor que a outra se se tratam de diferentes tipos de organização humana?

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Autoridade destruída pela politização da verdade

Seja como for, não me parece razoável tentar enfrentar o problema das fake news apelando para a ausência de educação formal das pessoas. O fenômeno possui raízes culturais muito mais complexas e me parece típico daquelas circunstâncias que indiquei acima. Por sua parte, os cientistas deveriam abandonar a posição conservadora a partir da qual enfrentam esse problema, reivindicando uma autoridade que foi destruída pela politização da verdade. Sem isso, perderão a capacidade de articular a ciência com os sistemas de crenças populares.