por Patricia Gebrim
Não é fácil escrever sobre família. Alçada com frequência aos extremos, essa instituição é muitas vezes idealizada, e nesses casos protegida por seus membros com o próprio sangue. Outras vezes, a família é demonizada e atacada como sendo a causadora de todo o mal, um mal que se perpetua geração após geração.
A verdade é que falta-nos objetividade ao olhar para a família, pois a mesma não se encontra nesse espaço visível em frente aos nossos olhos, e sim escondida em um lugar muito primitivo dentro de nós; enrolada de alguma forma em nossas entranhas, penetrando em lugares que nem nós mesmos sabíamos existir. Não é incomum que mesmo a pessoa mais equilibrada perca um pouco o rumo quando confrontada com seus dramas familiares.
Vamos inicialmente pensar na família como sendo um solo que nos recebe assim que chegamos a este planeta. Imagine a si mesmo como uma semente, contendo em seu ventre a soma de todas as possibilidades, das mais belas às mais horrendas. Uma semente que pode florescer e se tornar a mais perfumada das flores, ou apodrecer sem sequer romper a casca que a separa do mundo que existe lá fora. No decorrer da vida, qualquer um de nós pode se tornar um ser da mais profunda luz, ou uma caricatura medrosa e escura de si mesmo.
– A família nos acolhe da mesma forma que a terra abraça a semente em seu ventre, assim acontece com cada um de nós.
Dependendo da qualidade desse terreno familiar, a semente terá mais ou menos chance de cumprir seu destino. Não que a família seja o puro fator determinante. Da mesma forma como existem sementes que milagrosamente conseguem florescer sobre a pedra seca e estéril, para o assombro de todos nós; muitas pessoas conseguem em suas vidas manifestar qualidades dignas de uma luz maravilhosa, mesmo tendo vivido anos e anos em meio a um terreno familiar disfuncional, sombrio e assustador. De qualquer maneira, a qualidade do terreno familiar influencia profundamente a cada um de nós. Nossas crenças, nossos medos, o que pensamos sobre o mundo, sobre a vida, sobre nós mesmos; tudo isso recebeu a influência profunda desses primeiros vínculos que se estabeleceram no berço familiar e no ambiente que nos rodeou.
Uma família equilibrada, assim como um terreno saudável, teria basicamente que oferecer a essa semente dois elementos básicos: proteção e nutrição, representados simbolicamente pelas figuras paterna e materna. Uma família saudável, dessa maneira, deveria proteger e amar suas crianças, oferecendo-lhes um terreno propício para que pudessem se tornar elas mesmas, na sua melhor versão. Assim, o amor e proteção seriam equilibrados pela liberdade de ser, formando-se um triângulo anímico de sustentação, que permitiria a todos o mais pleno desenvolvimento.
É muito importante que sejamos capazes de compreender que "não cabe à família determinar o destino de suas sementes", destino esse que se encontra adormecido, pulsante e maravilhosamente contido dentro de cada ser. A função da família é a de simplesmente oferecer as melhores condições para que o ser se desenvolva e encontre seu próprio caminho. Seja ele qual for.
Quanto sofrimento seria poupado se as famílias compreendessem isso, se tivessem confiança na luz que se encontra contida em cada semente, se parassem de interferir, de tentar controlar o que não foi feito para ser controlado, e sim amado… Como seria maravilhoso se as famílias exercitassem a generosidade de dar de si mesmas a esse ser semente de luz, sem desejar dirigir, possuir ou aprisionar a luz que nasceu em seu seio. Como seria curativo se os pais compreendessem que seu mais belo legado a seus filhos seria dar seu exemplo, tornando suas próprias vidas significativas e luminosas. Quanta luz receberiam os filhos de pais capazes de brilhar sua essência. De pais felizes e capazes de amar a si mesmos.
Não é fácil na prática, eu sei. Não podemos esquecer que os pais muitas vezes vieram de famílias desestruturadas, não possuindo assim um nível de consciência suficientemente elevado para transmitir a seus filhos.
Muitos pais estão mergulhados em seus próprios dramas não resolvidos, faltando-lhes a capacidade de oferecer um terreno sadio, por mais que desejem fazê-lo.
Por falta de consciência, muitas famílias sufocam suas sementes, as prejudicam ao tentar cercear e controlar seu crescimento, desrespeitando a essência sagrada que pulsa dentro de cada Ser, cujo único desejo é o de existir e se autorrealizar. Sem que esse desejo seja cumprido, nenhum de nós pode experienciar a felicidade.
Equilibrar necessidades não é fácil
Como em qualquer instituição, existe, muitas vezes, nos grupos familiares, uma dificuldade de equilibrar as necessidades grupais da instituição familiar com o direito de individualidade de seus membros. Não é difícil imaginar exemplos. A família quer celebrar em uma ocasião qualquer, pode ser uma celebração religiosa, um aniversário, a chegada de um bebê… Mas um dos membros deseja fazer uma viagem nessa exata data. Muitas vezes é o que basta para dar início a uma espécie de guerra nuclear! É em momentos assim que podemos perceber o grau de maturidade dessa família. Seus membros são capazes de conversar sobre o assunto? Tem flexibilidade para encontrar soluções? Para negociar? Dão liberdade a seus membros para existirem enquanto indivíduos? Ou os engessam e os forçam a seguir as regras da instituição? Tem amor uns pelos outros? Conseguem desejar o bem do outro e permitir sua liberdade, mesmo quando o outro discorda da maioria? Ou só são capazes de amar quando são obedecidos? Será isso amor?
Enfim, ainda temos muito o que evoluir. Uma família saudável não deveria ser confortável demais a ponto de nos seduzir a ficar eternamente em seu seio, sacrificando nossos voos; tampouco deveria ser tão desconfortável a ponto de destruir nossas asas e nos fazer acreditar incapazes de voar.
Algumas famílias já são capazes de estabelecer vínculos mais funcionais e se tornam verdadeiros oásis na vida de seus membros. Um lugar de repouso e aceitação, um lugar que permite e incentiva a individualidade, a existência de cada um. Um lugar de respeito e acolhimento, protegido de críticas e julgamentos. Não há nada mais pacificador do que se ter um lugar assim para descansar um pouco após as batalhas da vida. Por mais que enfrentem problemas e desafios inerentes à convivência, são famílias regidas pelo amor, e não pelas regras da instituição.
Outras famílias, ainda imaturas, são verdadeiras praças de guerra. Os membros dessas famílias costumam relacionar-se a partir dos papéis que representam, e não dos seres únicos que são. Estabelecem-se relações de hierarquia que levam a distorções e desrespeito. Essas famílias se tornam locais de desconfiança, medos, jogos de poder, competição e disputa. Ainda terão um longo caminho pela frente. Mas não desanimemos. Famílias assim não deixam de ter sua serventia. São incríveis locais de aprendizado, pois não há escola mais eficaz do que a nossa própria família. Lá estão nossos maiores desafios, nossos fantasmas, tudo aquilo que evitamos enfrentar, que tentamos deixar para trás. Nossa lição de casa, nossa chance de aprender, transformar e curar. Nossa chance de estabelecer limites, de lutar por quem somos, de enfrentarmos o que nos oprime, de nos libertarmos do que nos aprisiona. De crescermos o suficiente até que sejamos verdadeiramente capazes de amar. Pois lhes digo algo em que acredito profundamente:
– Se pudermos verdadeiramente perdoar e amar aqueles que nos feriram, que não nos enxergaram, que cortaram nossas asas e bloquearam nossos voos. Se pudermos, ainda assim, amar essas pessoas, saberemos então que somos verdadeiramente capazes de amar.
É fácil amar quem nos ama. O verdadeiro desafio é o de amar aqueles que não sabem ainda nem amar a si mesmos.