Por Ceres Alves de Araujo
Em termos de estrutura e função, à família são atribuídas qualidades ideais que se referem ao refúgio seguro, a um lugar de paz, de amor e de harmonia entre as pessoas, onde existem relações amorosas e fraternidade. Esse foi um ideal mitificado por séculos, mas contradito pela experiência vivida.
Essa visão idealizada pode, entretanto, se manter como expectativa: a família como um lugar seguro para crescer. A família é o primeiro ambiente onde se desenvolve a personalidade de cada novo ser humano. É também o primeiro espaço das interações sociais, modelo das relações a serem estabelecidas e mantidas com o mundo. É a matriz da identidade pessoal e social.
Desde as últimas décadas, tem-se assistido a mudanças na estrutura da família, compatíveis com o mundo em transformação, no qual estamos vivendo. Hoje, têm-se famílias constituídas, famílias destituídas por separações, famílias reconstituídas e famílias não reconstituídas. Existem as famílias biparentais e as monoparentais, as famílias heterossexuais e as homossexuais. Cada vez mais se vê a coexistência de diferentes formas de conjugalidade.
No caso das famílias destituídas, antes se considerava que ser filho de pais separados era um alto risco no desenvolvimento. Hoje, entretanto, pode-se acreditar que um filho que vive no “velório” de um casamento “morto”, exposto a formas de relações hostis, corre um risco sério no seu desenvolvimento, pela vivência de um estresse crônico.
Independente de qualquer estrutura familiar, cumpre lembrar, porém, que a maternidade e a paternidade significam um compromisso irrevogável com o filho por anos. A separação do casal parental sempre é sentida pelos filhos como uma situação traumatizante. Dado o número elevado de crianças que têm os pais separados na atualidade, um dos maiores medos que os filhos têm é que seus pais se separem, o que faz com que se mantenham em alerta frente às discussões dos pais e a qualquer aumento de tensão na atmosfera familiar. Assim, quando são informados pelos pais que eles irão se separar porque “o amor entre eles não existe mais”, os filhos têm confirmadas suas mais temidas antevisões.
Com alta frequência, na fase anterior ao comunicado da separação, as crianças já viveram a falta da atenção de boa qualidade dos pais, pois esses estavam às voltas com seus próprios conflitos pessoais e não tinham mais a mesma disponibilidade amorosa para com suas crianças. É nesse ponto que começa a carência das crianças de afeto e atenção.
Com as reconstituições das famílias, surgem na casa novas pessoas: o marido da mãe e a mulher do pai. É importante ressaltar que as reconstituições em si são mais positivas que as não reconstituições, pois podem possibilitar às crianças a vivência de novas relações amorosas do par, o que constituirá um modelo de relacionamento de par mais positivo, espera-se. Pelo menos, dá a chance de modelos mais amorosos de relacionamento de casal. O aparecimento de uma nova relação homem-mulher traz imediatamente ciúmes para os filhos até pela percepção de que as atenções do genitor se voltam para outra pessoa. No entanto, a médio e em longo prazo, é geralmente o que de melhor pai e mãe podem fazer pelos seus filhos: casarem-se novamente.
No caso da reconstituição da família, sabe-se que um período de tempo considerável existirá até que o marido da mãe possa se transformar no padrasto e a mulher do pai possa se transformar na madrasta. A relação padrasto-enteado(a) e a relação madrasta-enteado (a) constituem inter-relações delicadíssimas. Os esquemas mentais das crianças de estar com essa nova pessoa serão construídos lentamente e elas precisam desse tempo. Aceitar, gostar do marido da mãe e/ou da mulher do pai, muitas vezes é sentido pela criança como possibilidade de traição ao seu genitor.
Cabe aos adultos, no caso, um posicionamento adequado frente àqueles que serão seus enteados e uma tolerância infinita, pois eles serão testados continuadamente pelas crianças. Quando o marido da mãe torna-se de fato o padrasto e a mulher do pai a madrasta, os filhos podem encontrar a reconstituição real da família. Uma vez que padrasto não é pai e madrasta não é mãe e essa diferenciação é importantíssima, as crianças podem se permitir encontrar relações diferenciadas e saudáveis com esses novos adultos em sua vida.
Padrasto e madrasta são apenas coadjuvantes na educação dos enteados. Não podem se colocar no papel de disciplinadores. Sua colaboração na educação dos enteados deverá ser à distância, via cônjuge sempre. A educação dos filhos permanece uma função não alienável dos pais.
Novos papéis serão desenvolvidos pelos novos adultos da família e pelas crianças. O papel de enteado será um novo papel que a criança irá desenvolver em uma relação extremamente delicada, mas com um potencial muito benéfico. Evidentemente existirá também um potencial para ciúmes e inveja, porém vicissitudes e adversidades fazem parte da vida e, se enfrentadas, muito aprendizado afetivo pode ser adquirido.
O fato é que as transformações que estão ocorrendo, na estrutura da família, no mundo contemporâneo, não significam uma ameaça à sua existência. O que presenciamos agora são mudanças que acontecem justamente para manter a família. Cabe, isso sim, aos pais saberem dar a atenção adequada aos filhos nos mais variados momentos e contextos da estrutura familiar.