E-mail enviado por uma leitora
“Boa noite! Meu marido é dependente químico há muitos anos. Em 2009, ele aceitou Jesus e se afastou das drogas e ficou seis anos sem usar. Parou de participar das reuniões da igreja, encontra-se afastado da presença de Deus (deixou de ir à igreja) e voltou a usar drogas novamente.
Desde 2014, vem usando cocaína compulsivamente. Às vezes fica dois dias sumido. Fico desesperada, não sei mais o que fazer. Quando ele aparece, vem com cara de arrependido, falando que não vai usar mais. Contudo, ele já falou isso diversas vezes e sempre voltou a usar. Não aguento mais ficar nessa sozinha. Às vezes fico depressiva, porque não tenho ninguém com quem desabafar. Acredito que Deus possa mudar essa situação, pois o Senhor é Deus do impossível. Porém, sei que é preciso ter uma posição sobre isso, pois parece que ele se acostumou. Ele diz que precisa da minha ajuda e eu não posso deixá-lo. Já pensei diversas vezes em sair de casa e me separar. Mas temos duas filhas que o amam muito. Peço muita orientação a Deus, mas sei que preciso de uma ajuda profissional.”
Resposta: Ao contrário das diversas abordagens médicas e psicossociais destinadas ao manejo de pessoas com problemas com o uso de substâncias psicoativas, as abordagens religiosas (ou baseadas na fé) têm sido menos estudadas cientificamente. Isso não configura um preconceito propriamente dito; isso é devido mais fortemente à miríade e à heterogeneidade dos conceitos e dos métodos utilizados por diferentes entidades ou credos religiosos durante a abordagem dos dependentes químicos.
Manejo basedo na fé
Claramente, nem todos aqueles que padecem de problemas com o uso de substâncias psicoativas são recrutados para um manejo baseado na fé, nem tampouco todos aqueles já inseridos nesses modelos de abordagem atingem o sucesso desejado da abstinência completa. A diversidade dos portadores e das respostas às abordagens baseadas na fé parece por demais desafiante.
De qualquer forma, as abordagens baseadas na fé (religiosas) não podem ser negligenciadas, visto que existem registros nos gêneros textuais médicos especializados no tema apontando resultados positivos, especialmente entre portadores de problemas com o uso de substâncias psicoativas com significativa inclinação religiosa/espiritual.
As abordagens baseadas na fé, grosso modo, tendem a fortalecer crenças de pertencimento, significado pessoal, transcendência e união. Algumas religiões tendem a fomentar a crença na importância da redenção, do sacrifício pessoal, da dignidade, da capacidade para perdoar e da possibilidade de ser perdoado. Em nome da dignidade e da liberdade de escolha, todos nós podemos ser responsáveis pelas nossas ações, bem como habilitados para nos arrepender de atos passados e recomeçar um novo estilo de vida.
Fé: cinco aspectos positivos que podem ajudar a se libertar do vício
Alguns dos aspectos dos manejos baseados na fé podem ser assim sumarizados:
a) A culpa pode ser removida do indivíduo à medida da sua conversão real, do perdão divino. Sentindo-se mais purificado, através do perdão e do pertencimento a uma família religiosa, o portador tentaria evitar contaminar-se novamente com condutas perniciosas, tais como com o consumo de drogas;
b) A família natural, frequentemente desgastada e fragmentada com os comportamentos desarrazoados do portador de problemas com o uso de substâncias, poderia ser complementada com uma “família” espiritual, coesa, interessante e participante na recuperação. Repiso o termo “complementada” e não “substituída;”
c) O portador de problemas com o uso de substâncias deverá compreender que o perdão, obtido através do verdadeiro arrependimento e da proposta de mudança do estilo corrente de vida, valorizá-lo-á novamente como um ser humano que encontrou um novo e promissor rumo;
d) O portador poderá utilizar as suas experiências nefastas do passado para “ensinar” novos integrantes e problemáticos da família religiosa sobre as dificuldades para vencer todas as etapas da dependência química e sobre as recompensas da abstinência total;
e) O apoio religioso não cessa com a abstinência total. O portador de problemas com o uso de substâncias é convidado e estimulado a manter-se na fé e no trabalho pastoral.
Falta imperdoável
Apesar destes aspectos amplamente positivos de vários programas de manejos baseados na fé, cuidados devem ser sempre tomados. Infelizmente, alguns grupos ditos religiosos podem desaconselhar, por exemplo, o tratamento médico e/ou psicológico conjunto, o que seguramente é uma falta imperdoável (com o perdão de um trocadilho pessoal).
Na experiência clínica diuturna, os tratamentos médicos e psicológicos associados com abordagens baseadas na fé e com grupos de mútua ajuda (Alcoólicos e Narcóticos Anônimos) resultam sempre em melhores resultados do que qualquer manejo realizado isoladamente.
A associação de duas ou mais formas de abordagem tende a produzir melhores resultados terapêuticos do que apenas uma forma de manejo. No entanto, cada uma delas deve ser criteriosamente examinada, averiguando as suas propostas, objetivos, métodos e intenções.
Revendo a sua pergunta, aponto algumas sugestões abaixo:
a) Você não deve estar sozinha nesta empreitada. Outros membros familiares/amigos conhecedores do problema devem estar envolvidos com o objetivo de auxiliar;
b) Para auxiliar o ente querido, como tenho escrito várias vezes neste site, o parente ou amigo deve saber como ajudar. Dito isso, é recomendável que você procure profissional especializado, explicando todo o problema, detalhando os modelos de tratamentos prévios (se houve algum), com o objetivo de angariar recursos e desenvolver estratégias saudáveis para continuar esta trajetória de oferta de ajuda;
c) A fissura pela cocaína costuma ser por demais intensa e violenta. Por vezes, a internação em clínica médica especializada deve ser aventada, com o objetivo de romper o padrão compulsivo do uso da cocaína. Para tanto, o seu marido deve ser avaliado por médico especialista;
d) Imponha os seus limites e não tenha receio de pedir ajuda de terceiros. A sua ajuda pode ser imprescindível; todavia, você precisa saber como poderá ajudar sem arranhar a sua própria saúde;
e) Respeite-se!!! Não permita que os seus valores pessoais sejam perturbados.
Não perca tempo!!!